quarta-feira, setembro 02, 2009

Hoje

Não gosto deste silêncio de palavras que hoje pinta a ausência do teu rosto. Sobra-nos o tempo. Sozinha recolho fotografias recentes dos nossos afectos, e construo muralhas de imagens que falam de ti. Não preciso de mais do que isso. A tua voz em fotografias da minha mente, em dias em que nos sobra o tempo em gestos, é o mais sereno do cântico dos pássaros de verão. E não preciso de mais do que isso.

sábado, agosto 01, 2009

Não consegues mudar ninguém. Nunca. É da natureza das pessoas serem o que são, e nada poderás fazer em relação a isso. Nem o amor, nem a perseverança, nem todas as cartas que escreveres com a melhor das tuas impressões digitais cravadas nelas. Nem as melhores intenções e definições que encontrares nas coisas mais simples ou complexas para expressares os teus segredos mais escondidos. Nada do que ouvires será intrínseco. É tudo tão efémero e indistinto quanto um monte de pétalas caídas no meio do cimento vivo que os teus pés um dia já pisaram. As flores nascem e morrem sem ninguém chorar por elas, por mais harmoniosas que nos pareçam num dado instante do tempo. As palavras são conjuntos de sons e sentidos orquestrados com maior ou menor perícia. O bater do coração é supérfluo e as mãos cheias uma sensibilidade mais aguda. Nada do que tens agora te foi dado pelo destino ou forças maiores que a física, tudo é um conjunto de acasos semi-escondidos nas estruturas das coisas. E tu resistes, esperando que o acaso te atinja de uma forma benéfica. Esperando que ele te deixe sorrir em alguns momentos.

Não queiras ser uma tábua de salvação para ninguém, pois ninguém o será por ti. E quando o souberes, perceberás que te despiram de toda a tua racionalidade, e que te deixaram só na curva de uma rua sem destino nem ordem, onde tudo em volta são espectros repetidos de imagens de Deus ou o Diabo. E já não saberás distinguir o reflexo que te caracteriza a alma que te resta no corpo. Tanto faz.

Às vezes penso que a formatação mental era uma coisa excelente para dias medonhos.


Persistência da memória



"Um livro é feito de uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis (que ainda se chamam folhas) impressas em caracteres de pigmentação escura. Dá-se uma vista de olhose ouve-se a voz de uma outra pessoa – talvez alguém que já tenha morrido há milhares deanos. Através dos milénios, o autor está a falar, com clareza e em silêncio, dentro da nossacabeça, directamente para nós. A escrita foi talvez a maior das invenções humanas, ligando as pessoas, cidadãos de épocas diferentes que nunca se chegaram a conhecer. Os livros quebram as cadeias do tempo, provam que os seres humanos são capazes de exercer magia."

Carl Sagan, in Cosmos



domingo, junho 21, 2009

Should I crawl into my bed and stop producing things all the time?

Deixa-me pousar os olhos. Só por um bocado, só para te ficar a ver. Só para absorver os teus traços mais uma vez, como se eu não os soubesse de cor. Como se fossem meus, embora de uma certa forma obsessiva os sinta pertencerem-me. Deixa-me ficar aqui sem dizer nada, sem me denunciar com palavras. Nunca saberia sequer dizer as mais correctas, nunca sei porque se deixam corroer pelas minhas incongruências. É, deixa-me ficar aqui a espreitar-te, pelo cantinho, a fingir que nem sequer estou a prestar atenção. A fingir que não me importo, que não sei, que não quero, que não preciso. Deixa-me estar. Até me sentir bem outra vez.


Agora já estou pronta para voltar.


sábado, fevereiro 28, 2009

God save the queen

Estar de volta é o costume. O acordar de sempre, as ruas mais pequenas e lentas, mais despidas de um frenesim acústico que aqui não se faz sentir. Da próxima vez ficamos por lá, no meio das ruas da outra cidade, onde cada fachada parece contar uma história longa de origens remotas e difusas, onde a atmosfera nos absorve com um sabor e um perfume vistosos, imprimidos em remendos de coisas deixadas à deriva a cada nova esquina. Nada é virgem, nada o pretende ser, e no entanto tudo é brilhante e singularmente belo, tudo gira à velocidade de dez milhões de chamamentos de sotaque distinto, convidando a uma dança inebriante nesse palco de cores. E nós dançámos, até cair o pano do crepúsculo, até a escuridão nos envolver no seu leito, por entre os pigmentados recortes das torres. 

Ainda preservo um pouco desse frenesim acústico numa espécie de sentimento melodioso, quando me passeio pela marginal e pelas ruas pequenas. E elas quase parecem maiores e mais brilhantes.


sábado, fevereiro 14, 2009

O copo ainda não está vazio...

O tempo quebra-nos os dedos. A bebida tornam-nos frágeis. Então partimos, partimos num horizonte sem eco, sem pegadas. As pessoas todas ficaram para trás, chegamos onde já não as conseguimos chamar. Já nem sabemos o nosso próprio nome, pois tudo se esvaziou sobre um labirinto de frases vazias. E, contudo, parece que nos caem nas mãos, as palavras, caem-nos nas mãos. 
Bebe mais um gole. Deixa-te invadir por essa inconsciência que te leva todas as razões, até ficares só com a vertigem e os estilhaços que potencialmente te pertencem. E o desejo, as mágoas, o regresso. Se pudesses regressar a um tempo que já não existe, não saberias fazê-lo. Já não sabes ser o que eras quando não eras o que agora és. Já não sabes ser aquilo que não queres.
Tenta preservar a alucinação só por mais um par ou dois de minutos, até teres certeza. Depois podes sair, e oferecer a alguém todas essas palavras que te caíram nas mãos. Pronunciá-las como deve ser, como um verso mal construído que de tão honesto nos faz estremecer. E saberes fazê-lo, agora que te sabe bem fazê-lo. Na verdade, não saberias dizer tudo isto de outra forma que não esta. Mais uma vez, só o dizes pela metade.
Era tudo tão mais simples para ti se todas as noites fossem sexta-feira agarrada ao seu peito enquanto a música soava, ou sábado de manhã enquanto no teu cérebro tocavam notas idênticas a essas. E tu a tentares tocar as teclas de um piano imaginário, no meio dos lençóis e do perfume a incenso e a sofreguidão.
Tenho medo de um dia acordar e não ver o teu rosto. 


segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Sinto-me nostálgica e sei que isso me faz mal. Então finjo que nada existe. Só o aqui e o agora. É tudo com o que podemos contar. O resto, ou já passou, ou estará hipoteticamente ainda para vir, ou não sentimos, ou não quisémos sentir. Tudo depende da nossa vontade de dar e receber algo de alguém, alguma vez. E podemos sempre ignorar tudo o que está à volta disso.

O aqui e o agora. Se calhar o resto não existe mesmo.

Parabéns.

domingo, dezembro 21, 2008

Bebe-me a alma, aconchega-me o peito. Espia-me por entre as árvores enquanto me distraio com os gritos dos pássaros. Da ausência, não pedi mais nada, com medo que as agulhas me assaltassem os risos da memória. As palavras, cansadas, não me disseram mais nada do teu nome, naquele fim de tarde em névoa. Guardei-as para dentro de mim, até adormecerem no meio dos teus braços. E os pássaros fugiram para longe, as folhas caíram. Como caem os homens mais fortes por vezes das árvores.

Só tu ficaste a observar-me, naquele fim de tarde. Minuciosamente. 



sexta-feira, dezembro 05, 2008

Rendição

O texto irrompe no vácuo quando não tenho mais forças para mover os dedos. Descreve uma linha curva, em direcção à aresta das coisas que se movem no quarto. Perdi-me no meio das histórias que contas e engasgo-me no silêncio que fazes quando és somente tu a escutar. Esqueci-me por dois segundos de como lidar com ele, com essa entrega incondicional, é uma espécie de pomba que tu soltas com as tuas mãos, e eu fico a vê-la partir para longe, sabendo que vai encontrar o seu lugar por detrás dos montes e das cidades. E de onde ela veio restaram apenas umas mãos abertas a um silêncio desmedido em carícias e compreensão, e uma rapariga embasbacada nesse mesmo silêncio, com receio de o quebrar com palavras parvas, bloqueada entre dois segundos de tempo virgem. E depois lembro-me que no vácuo o tempo não conta. É como a eternidade, de que já falámos noutros dias.

Dás-me vontade de escrever textos sem mais nada de novo, só para juntar as palavras que já temos na palma das nossas mãos. Sinto-me sempre no dever de as pronunciar para ti.

sexta-feira, novembro 07, 2008

Praga

As paredes caem sobre os nossos ombros como se um véu nos fizesse sucumbir sob a nossa própria solidão. A noite sobe com as veias aos saltos.

Nunca as pessoas foram tão estúpidas. Nunca a estupidez foi tão cardíaca, tão autónoma. Com os seus pequeninos membros a desenvolverem-se por baixo da sua existência tacanha. Faz-nos obesos e débeis de parvoíce. Ela fala para a multidão e promove bailados de obscenidades, e surgem rostos, muitos rostos, e ninguém pára de dançar porque ninguém vê o tamanho da cova. E já não se sabe o que dizer às pessoas que se desviam do seu rasto de fel, porque ela começou a trepar com os seus pequenos membros o tronco das árvores, e a instalar-se nas raízes, debaixo das pedras, e a demolir os edifícios que criámos com a alma. E tudo à nossa volta cai.

As palavras já não confessam. Só existem, debaixo das pedras, esmagadas, encolhidas. Confessem-nas em delírios. Vão lá buscá-las, pois a vós pertencem.

Talvez elas não sejam afinal mais do que um sopro. 

terça-feira, novembro 04, 2008

Roda

Tudo tem o seu sentido, mas nem tudo faz sentido. A roda gira demasiado depressa e todos são pequenos. As vozes são demasiado altas e eu sou demasiado na tangente. Sempre. Passeio-me por lá, em busca de respostas a perguntas que nunca quis fazer, questionando princípios e finais de raciocínios que não quero possuir, porque não me dão razão. Pergunto o caminho na linha que divide os hemisférios. Esqueço. Esqueço que o mar e a solidão existem, intrinsecamente ligados por laços de desmesurada insensatez. Finjo que não sei as respostas para poder imaginar um pano de fundo de um palpitar onírico diferente do meu. E não sei mais nada. Ou finjo não querer saber mais nada. A chuva cai dentro da minha cabeça e as poças de água lavam-me as memórias. Só fica a roda a girar demasiado depressa. 

E daí, talvez não seja tudo assim tão vertiginoso. Quando estás, as piadas já fazem sentido, e o tempo corre devagar. E cada beijo teu é um fim do mundo.

domingo, outubro 12, 2008

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4h da manhã. As luzes esbatiam-se nas árvores como um manifesto embaraçado de ternura, e eu observava-as da esquina de uma rua sem nome, sem morada. E nada mais àquela hora poderia ser de outra forma.


É, são horas de ir dormir. Mas eu não tenho tempo para isso.

sábado, outubro 11, 2008

Pois é

E se acordar a balbuciar monossílabos imperceptíveis acerca de qualquer coisa de errado nos meus sonhos tu vais compreender porque estou eu a dizer disparates àquela hora, porque a claridade da manhã por vezes estremunha-me as frases e só consigo pensar metaforicamente, e então tu chegas de mansinho e dizes bom dia com voz de pequeno-almoço e de doce de morango nas torradas, e eu sem querer já só consigo pensar no calor do teu corpo junto ao meu enquanto sorrio, e mentalmente peço que não faças nenhum movimento mais brusco, para eu não descontrolar as minhas mãos num deambular sobre o que é teu, e de repente a luz entrou no quarto e invadiu os cantos mais secretos, e era hora de sair de casa e ir ter com todas as pessoas, do metro, da rua, das salas, das cantinas, e ser como uma delas durante 2 segundos, e sentir horas e horas o vazio a devorar-nos as falas enquanto nos tentamos lembrar do que realmente éramos, e nos tentamos lembrar porque raio estamos longe um do outro se na língua nos ardem as palavras, do tanto que temos sempre a dizer um ao outro.

quinta-feira, agosto 28, 2008

Vigília

As estrelas desenham-se frágeis num tecto opaco de reminiscências. Perscruto através das paredes as poucas vozes que nos restam. De ti, apenas um gesto, o teu melhor, como sempre. Saiba eu acolhê-lo também da forma de toda a sua plenitude, e guardá-lo preciosamente numa caixa junto ao coração. 

As estrelas desenham-se sem suporte. Instalam-se no céu e nas esplanadas da rua escura, atrapalhadamente. Dei-lhes o teu nome, e uma página de diário em branco para elas habitarem sossegadas. Do outro lado da folha, uma estrofe vertida pelos teus lábios numa tarde de há demasiados dias. Em hipérbole, obviamente, como devem ser todas as cartas dos amantes.

Visto-me das cores das folhas de Outono, que não chegaram ainda. Amanha de manhã já vou beijar as tuas mãos, e as estrelas ficarão à porta à nossa espera. Fá-las-emos esperar, como sempre? Desta vez talvez fique lá dentro mais um pouco, semi-escondida no meio dos teus braços e das faixas de música, até que a maior parte das pessoas tenham já partido para outro fuso horário. E as folhas de Outono virem andorinhas e o céu seja o de primavera vaidosa e febril.

Creio que alguém devia escrever alguma coisa acerca das estrelas a flutuar lá em cima. Eu já esqueci os nomes que lhes dei outrora, enquanto absorvia as palavras vermelhas do poema. Leio-o agora, na esperança de te ver nascer das suas linhas hiperbolicamente, por detrás do pêndulo da tua falta nestas mãos que não te agarram, como não me servem. Pego no telefone para tentar não ouvir o conta-gotas das ausências, e falo de ti às paredes do quarto. Baixinho, elas respondem-me com a tua voz, do outro lado: “Traz-me os teus caracóis ruivos. Devo-lhes algumas horas de contemplação.”

quarta-feira, agosto 20, 2008

Out

Tenho o dicionário interior todo a palpitar palavras de melancolia. Está um tempo esquisito lá fora, por isso fico-me pela penumbra introspectiva que subitamente invadiu os cantos do quarto. Não estou para ninguém, não me apetece ser cordialmente activa, só me apetece estar, ser, o menos possível. Descansar os olhos da mente enquanto observo o vazio do tecto e o transformo aos poucos numa amontoado de ideias minhas empilhadas anarquicamente, como é meu costume. Exijo uma espécie de coerência interna que nunca existirá em mim, e escrevo linhas onde expando todo o meu egocentrismo, de uma forma absurda e febril, como se precisasse de extrair tudo e exorcizar. Mas a confusão está lá, manifesta ou não, e eu aceito-a enfim passivamente, de uma forma narcisista  e irritantemente amigável.

Não estar para ninguém. Excepto para os transeuntes do passeio ou do meu sonho, aqueles que não têm cara, não têm pormenores para eu analisar e me apaixonar. Perdidamente. Se calhar devia ficar-me pelos contornos da praia e do areal, e tentar desenhá-lo à medida da sua imensidão, e desistir a meio porque a eternidade é indeterminadamente bela e é essa imprecisão que lhe confere traços tão mais graciosos quanto inacessíveis. Eu não sei desenhar a eternidade. Talvez se soubesse, a desenhasse sob a forma do teu rosto, que é a única coisa que eu sei desenhar sem me cansar, e sem perder o rumo. É a única coisa que me sabe bem quando tudo o resto me sabe mal, ou pura e simplesmente não me sabe a nada.

Talvez o teu desenho cravado na minha mente, outrora despida de coisas, seja uma espécie de vício que eu já não consigo deixar. É um vício de mimos e de palavras e de silêncios que eu nunca tive antes, porque eu sempre achei as pessoas demasiado entediantes para isso, ou então sou eu que me entedio injustamente com as pessoas e depois sobrevalorizo os meus próprios critérios. Não sei. Sei que mudei, e que estou mais serena e mais justa comigo e com o mundo. Já não discuto comigo mesma em voz alta tantas vezes. Já não dou tanta importância às outras pessoas. E já não sou e faço tudo tão desenfreadamente. Bom, só as vezes.

Hoje não estou para ninguém. Só para as cores que estão lá em cima, no tecto, enquanto eu as olho e me sinto daltónica. Again.

terça-feira, agosto 12, 2008

Dali e os relógios


São à maneira do surrealismo, que é o mesmo dos sonhos e das memórias. Entranham-se persistentemente na tela que pintei na tua ausência, escorrem uma gosma de tempo inseguro por detrás de uma cortina de cores velhas e disformes. Reconheço-lhes o absurdo e a demência que impregnam em mim como espasmos, quando perscruto avidamente os ponteiros que dançam no éter. E creio que fazem pouco de mim. Realmente, não tenho sobre eles qualquer poder, e eles riem-se um pouco da minha óbvia debilidade. Pergunto-lhes por ti, mas de ti nada sabem, porque não os leste ainda, e eu não te conseguirei explicar nunca da maneira certa. Se ao menos eles me deixassem dormir como dantes…

Ironicamente, os relógios não me servem de nada. Servem apenas para te tentar escutar mais alto, e perceber que não consigo ouvir-te. Os ponteiros ampliam os segundos que se aproximam, para logo de seguida os executarem violentamente, sem falhas, numa operação subtractiva que me dá prazer ao mesmo tempo que me deixa a alma pequenina. Como se da tua ausência dependesse a execução do tempo a conta-gotas. Quando fico sozinha, escuto a minha própria solidão, e apercebo-me de como ela pode ser ambiciosa quando me apanha desprevenida. Quando estou sozinha, tudo me parece assustadoramente desproporcionado, como se tudo à minha volta tivesse o dobro do tamanho normal. E na minha solidão encolho-me agarrada aos joelhos enquanto me convenço de que tudo está sob o meu controlo, e que o meu mundo cabe mesmo dentro de uma caixa de fósforos, e que tudo o que acontecer a partir dele será porque eu assim o consenti.

Dança comigo agora por entre os espaços dos ponteiros, onde eles não conseguem executar o nosso tempo, e onde o princípio é o fim ao mesmo tempo e para além do tempo.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Trembling Knees

Convidou-a para jantar, e serviu-a de frases audazes sobre cinema, poesia, as nuvens a fugir na janela. Um pouco de vinho no copo, um vestido bailando sobre os joelhos, os olhos à procura das evidências do corpo. Ela sorria muito e concordava com o que ele dizia, embevecia-se de forma subtil, a mão no vestido, joelhos dançantes. Ele falava pausadamente, aproximava-se dela, serviu-a de mais um pouco de vinho, uma sobremesa a rematar o final da conversa sobre esquimós. Risos. Uma senhora do jazz, de voz cristalina, a acompanhar o quadro dos amantes na sala. Um bom filme para ver, mas só mais tarde. Mais risos, a mão a querer pousar no vestido. Sem querer. Frases mais curtas, a tentar adiar o silêncio. Olhar, fixamente, sem medos. E perceber.

sexta-feira, julho 11, 2008

aspas

"O estado normal de duas almas gémeas é o silêncio. Não é o "não ser preciso falar" - é outra foma de falar, que consiste numa alma descansar na outra. Não é a paz dos amantes nem a cumplicidade muda dos amigos. Não precisa de amor nem de amizade para se entender. As almas acharam-se. Nao tem passado. Não se esforcaram. Estão. É essa a maior paz do mundo.

Como é que se reconhece a alma gemea? No abraço. Quando duas almas gemeas se abraçam, sente-se o alivio imenso de não ter de viver. Nao há necessidade, nem desejo, nem pensamento. A sensacão é de sermos uma alma no ar que reencontrou a sua casa, que voltou finalmente ao seu lugar, como se o outro corpo fosse o nosso que perderamos desde a nascença.

Toda a angustia do eu se dissipa. É-se inteira e naturalmente aceite. Sem perguntas. Sem condicoes. Sem promessas. E mergulha-se no outro como se ja nao fosse preciso existirmos."

Miguel Esteves Cardoso


Olha, já tudo foi dito sobre nós.

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Dói-me a cabeça. Doem-me as mãos vazias e a ausência de racionalidade. Não sei se não existo ou se sou apenas uma concha, fechada para obras, no meio de um mar de vozes que me abraçam tentacularmente. Não sei se sou uma ideia prematura na mente de alguém, e um dia vou-me dar conta disso mesmo, e querer partir para longe, onde não seja visível a minha fragilidade, onde a Primavera refaz alegremente os seus vestidos, e eu lhe peça ajuda para me construir de novo com as suas cores, peça a peça, como um artista a sério.

Apaguei a luz e os bonecos de sombras já não se movem como eu julgava, uma voz de piano mudo não se ouve como eu gostava, e sinto-me disléxica quando escrevo para ti. Às vezes não sei medir por dentro o verdadeiro tamanho das coisas, e depois não sei se disse as palavras certas ou se me fiz entender da melhor maneira. Não queria falar de coisas banais que não me definem, nem a ti, nem ao mundo no qual combato em teu nome, procurando segurar os filamentos do pouco que ainda não se tornou completamente inútil e abstracto, de uma realidade demasiado parva e incongruente para nós, onde tento mover-me sem cair nos buracos. Porque às vezes as coisas fogem do seu devido lugar, e no escuro tu nem te apercebes, e esbarras contra as muralhas de outros castelos, e percebes que já não és dali.

Não quero viver dentro de uma mala, está escuro e não se respira bem lá dentro. Ou então só preciso de olhar para ti esta noite, enquanto me sinto ausente e vazia, e perceber pelos teus olhos que existo mesmo, fora de uma caixa de vidro, fora do que as pessoas me delinearam, só por mim mesma, e depois em ti, só em ti. E não ter medo de cair, nunca mais.

Hoje parece que as coisas não páram de fazer sentido.

sexta-feira, junho 20, 2008

Sanctuary

As cascatas da memória eram feitas das vontades que dissemos entretanto. Hoje rimos de nós próprios, mais ainda do mundo, que continuamos sem entender, nem queremos, nem podemos, rimos do vermelho que se abate nas palavras de cada vez que as chamamos a nós, sofregamente. Sentei-me do teu lado no meio da cidade e ficámos a olhar um para o outro sem dizer mais nada, e de repente as nossas mãos encontraram-se nas planícies dos nossos corpos, e tudo era lírica as palavras estavam lá todas, por inteiro e sem diminutivos, em alta voz e repletas de acentos circunflexos, e se eu perdia o equilíbrio tu agarravas-me e deitavas-me sobre os teus ombros, e ensinavas-me que o mundo não existe mais depois de nós, e eu acreditava e adormecia. E os relógios todos voltavam a fazer sentido.

sexta-feira, maio 23, 2008

Fragmentação da memória

Não tenho tempo para escrever. É verídico, os dias correm de forma insubordinadamente veloz. As aulas parecem glacialmente teóricas e especulativas. A matéria insípida acumula-se ao lado do pc, os trabalhos ocupam metade do cérebro, o site da meteorologia revela a insanidade das nuvens de Maio. Escrevo enquanto chove lá fora, e na casa de fim-de-semana oiço o som com que ela dança nos telhados com nitidez. Não é como nos prédios altos onde se distinguem apenas os barulhos dos vizinhos e o ruído motorizado de uma multidão sem rosto.

É Maio, decisivamente o mês mais rápido do ano. O mês das serenatas e das capas negras de saudade, e das noites intermináveis passadas de forma invencível, e do jet lag dos relógios violentamente trocados, e das emoções da alma apertada. Eu gosto da forma caótica deste mês onde tudo parece acontecer. Até as desilusões me fizeram relativizar as coisas e perceber quem realmente importa conservar no coração e quem só anda por aí a fingir ser gente a sério, para conseguir ser alguma espécie de herói a ter orgasmos com as falhas dos outros. É assim que o mundo gira, com pessoas que interessam e outras que não interessam assim tanto, porque não somos assim tão bonitos como tentamos parecer por fora. Pena que eu nem sempre saiba perceber a diferença.

Tens razão, é reconfortante ouvir o som da chuva a cair nos telhados da casa.

Procuro-te no seio das mensagens enigmáticas, leio-nos nas minhas linhas a toda a hora. Já me referi à data e à insanidade das nuvens? Apeteceu-me desafiar o horário e escrever mesmo sem ter tempo, porque às vezes precisamos mesmo de um tempo para nós. Tempo para pensarmos em nós, mais do que nos outros, para variar um pouco, afinal temos o papel principal numa peça que não faz sentido sem a nossa efervescência. A encenação nem sempre cativa o público, mas também só temos uma tentativa, e o grau de complexidade que assumimos poderá não ser sedutor para a audiência que assiste. Não temos códigos de segurança válidos quando estamos no palco e interagimos com os outros. Pessoalmente, gosto de pessoas densas, insubmissas. Que me digam coisas interessantes e inteligentes. Que me façam não compreender logo tudo à primeira.

E agora não me apetece escrever mais nada de congruente. É Maio, e chove nos telhados, e os meus pés estão frios, e tu não estás aqui. E as viagens de autocarro demoram sempre duas horas e eu fico cansada e melancólica ao ver as árvores correrem para trás muito depressa e a estrada ser sempre tão comprida. E tenho medo de ver as árvores fugirem tão depressa. Tenho medo do tempo se escapulir vertiginosamente e o esquecimento invadir as árvores como chuva nos telhados, toldando para sempre a memória das pessoas.


Kundera, o melhor contador de histórias de todos os tempos, diz que, na matemática existencial, o grau da lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória, e o grau da velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento. Esta operação elementar evoca-me a tua imagem, e a razão pela qual eu nunca me vou esquecer de ti. A lentidão de certos momentos é deliciosa. O acto de absorver sofregamente os pormenores. Ver-te chegar e o tempo suspender-se nos filamentos da memória. Decorar-te como se fosses uma frase de engate, um acorde da balada mais densa, uma quimera. Consumir-te da forma mais demorada possível, para que sejas poeticamente eterno, como já és, mas talvez ainda mais eterno, se for possível, até a própria eternidade se encolher num canto, embaraçada pela sua pequenez.

sábado, abril 19, 2008

E é só isto

Não sei se deva escrever mais do que já sei que nós sabemos e já toda a gente sabe, como uma espécie de verdade universal. Não sei se deva dizer que tenho medo, que as imagens do passado me fazem comichão na nuca, e que os outros por vezes me irritam quando opinam demasiado, e eu sei que eles não têm razão, mas há alturas em que estamos mais cansados e toda a razão se dissipa para trás das paredes, e eu começo a perder o fio das conversas alheias, e não me apercebo que é tudo mais um equívoco. Eu sei, eu não devia ouvir o que não interessa, e faço um esforço por ignorar, mas às vezes as frases ficam a ecoar convulsivamente até se esconderem nos cantos do quarto, e só me apetece agir da forma mais palerma e grotesca, para que os outros tenham enfim razões para falar. É, eu podia ser assim, como os outros querem. Mas não sou.

Porque se calhar os outros não querem que eu te queira assim, como quem quer Pearl Jam e céu de primavera, a escrever textos que toda a gente sabe que são para ti, onde eu digo que há muito tempo atrás eu já não acreditava em muita coisa simples e já tinha deixado de procurar no meio das pessoas, mas afinal se calhar o amor existe mesmo e é maior do que as pessoas falam, e não são as palavras que o chamam em voz alta, é qualquer coisa para além disso, que eu não sei muito bem explicar, só sei que está a bater aqui dentro com muita força e eu já sei que nome lhe vou dar. O teu.

sábado, abril 05, 2008

Gigante

Olha não digas mais nada. Eu sei que é gigante e até o silêncio é cheio porque tu respiras. É assim e não me perguntes porquê, tu também o sabes. Também me vês por todo o lado? Eu sonho contigo e estou bem acordada, e vejo o céu mais claro, desenhado com palavras dançantes como plumas, as nossas, enquanto nós as bebemos de um só trago. És refúgio dos meus sentidos e és tudo o que não é cliché. É simples, nunca ninguém conseguirá ser igual a ti, porque basicamente não é possível. Porque se calhar tu não existes mesmo, ou és mais do que tudo o que já existiu, ou apenas tudo o que realmente importa. És tudo e és nada das coisas nomeáveis. És mais do que isso.

Depois fazes-me ser assim maior e ver tudo luminoso e nítido, através de uma lente mágica de caleidoscópio onírico. Saio à rua e parece que toda a gente é mais bonita. Explico às pessoas que são gigantes como nós, apesar de nunca o serem assim tão abusivamente, é óbvio, nós somos mais, maiores, os únicos, os melhores. Reprovem o meu discurso altivo, mas é mesmo assim, tudo o resto são coisas menores, tu e eu é que criámos as leis da física e da anatomia das almas e dos corpos, e o sol pintámos num dia de verão a olhar para um horizonte a sépia. Ignoramos assumidamente a previsibilidade meteorológica das pessoas porque nos entedia, por isso criámos esta bolha à nossa volta onde tudo está em estado líquido, e onde o nosso dialecto impera. E não vamos mais sair da bolha que criámos. É um compromisso que tomámos ao som do teu livro de poesia.

E afinal os fantasmas não existem, nem o efémero. A escuridão é uma bênção e o teu corpo um aquário. E só tu existes, no meio das pinturas, ampliando-me com essa lente onírica que trouxeste. E enquanto fores real eu não vou ser mais pequena e fraca. Obrigada.

(Ainda bem que quando chegaste eu não te soube prever como a meteorologia.)

segunda-feira, março 17, 2008

Horóscopo das ausências

Pela enésima vez confirmo o calendário, o relógio já eu sei que ficou parado nas simulações da memória e o tic-tac é uma partida da minha mente, que se diverte a inventar estímulos sensoriais para eu acreditar que os dias são normais. Mas não são, o tempo não passa como nos dias normais, o relógio não tem ponteiros, só números desordenados na espera, o calendário perdeu os sentidos e não reage aos perpétuos anoiteceres e amanheceres que o horizonte ordena, talvez tenham já passado anos e anos, quantas voltas terei dado aos astros nos últimos minutos, quantas vezes terei violado as tuas mãos nos últimos segundos, quantas e quantas vidas o inconsciente terá criado, enquanto se diverte a atirar-me sem pudores com estilhaços invisíveis da nossa dança etérea. Olha, hoje sonhei que vivíamos dentro de uma caixa de música, e dançávamos com as mãos dadas e os olhos fechados para os nossos beijos, e de repente todos os sons que haviam na cidade emudeceram para se ouvir o nosso grito e as pessoas ouviam aquela música difusa por toda a parte, a invadir as paredes dos prédios e a entrar pelas janelas dos carros e a tocar as flores e as árvores e os pássaros e os mendigos do passeio da cidade das pontes, e as pessoas nas esplanadas tentavam entender que barulho era aquele que se ouvia em toda a parte, mas por essa altura já nós tínhamos extinguido as notas musicais da partitura.

sábado, março 15, 2008

Vou escrever-te uma carta.

Vou escrever-te uma carta. Vou escrevê-la num rascunho e passar à mão com a minha letra mais bonita, e sair à rua e mandar alguém levar rapidamente à tua porta, para tu depois rasgares impaciente o envelope que tem a tua morada com a minha letra mais bonita, e o teu nome completo de director de empresa ou de ilusionista, e leres o que tu já sabes dos meus olhos e do que eu não digo, e vais guardar essa carta algures numa caixa que tu ainda não tens mas que vais comprar para que eu possa escrever muitas mais futuras cartas com caligrafia perfeita e o teu nome de director de empresa desenhado no envelope. Aos poucos as minhas palavras irão ecoar excessivamente aos nossos devaneios e ficarão gastas de tanto as repetirmos, mas não faz mal porque nós vamos inventar outras novas para nos referirmos ao que nunca soubemos bem dizer, e não faz mal porque os teus olhos nunca irão deixar de emanar musica de filme e os meus caracóis não vão recusar-se nunca dos teus dedos, por isso é tudo uma questão de escolha das palavras que decidimos entregar um ao outro, se bem que quando eu gosto mais é de estar a olhar para ti sem articular nenhuma delas, porque às vezes é tanta coisa que eu quero dizer ao mesmo tempo que nem um milhar de anos chegaria para ouvires tudo o que eu tenho para te dizer.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Danço na escuridão do quarto. Agora estou sozinha. No meio de mim, no mais fundo de mim, debaixo das flores, das palavras, dos lençóis, fico eu. Sou só eu aqui, despida de coisas, a dançar na escuridão, por entre os dedilhados, acordes dos meus dedos, das minhas imperfeições. Reparo que deixaste impressões digitais aqui, junto à luz redonda do canto dos livros, se calhar é só impressão minha. Às vezes não penso direito, preciso que me digas que sou bonita, de alguma forma, entre os cobertores do sono, diz-me que sou bonita de alguma forma, como no filme. As pessoas não percebem e eu não as percebo, tudo é um enigma no meio do caos que nos devora a voz e os membros. Eu gostava de aprender mais depressa a entender as pessoas e a gostar de todas elas, e a perceber o que elas querem dizer quando não dizem o que querem dizer, e a sentir todas as coisas da maneira certa, e as razões e os vaticínios. Há dias onde a neblina é demasiado densa e não consegues vislumbrar os sinais de luz, nem perceber o alcance de todas as coisas, e se valerá a pena, algum de nós. Entristeces as pessoas porque há pessoas que te entristecem. Eu só preciso que tomem conta de mim, de vez em quando. Vamos fingir que escrevemos o enredo e ele tem muitas metáforas, e nós não questionamos nada e tudo se parece com um bailado em câmara lenta, entre as luzes e a vodka o ruído das pessoas.

Vou-te imprimir no chão e em todas as paredes, algures, onde não nos possam ver, onde as coisas não têm nome e nós não as nomeamos nunca. Vou contigo para a praia ouvir o mar e o silêncio que de lá emana como um vórtice, e nem vou perguntar nada, vou só ficar assim a olhar para ti. Ah, se tudo fosse idêntico aos meus sonhos, e a musica soasse simbiótica e frágil. Se todas as manhãs me trouxessem flores e a primavera fosse hoje, e tu me dissesses que a lua nos tinha criado nesta noite e que os fantasmas não existem e eu acreditava.

E sim, se calhar sou um bocado fraca e uso muitas cores na alma para tapar o resto, diz-me que sou bonita assim, entre os cobertores do sono, como no filme. E diz-me que os outros não existem.




domingo, fevereiro 10, 2008

Uma voz de poema qualquer.

Quero-te para além das coisas juntas. Quero-te para além das rosas e dos gestos. Quero-te para além das paredes que nos ardem. Em pensamento, pecamos sempre demasiadas vezes, em pensamento. Por isso quero-te para além dos astros das minhas veias nas tuas veias em veias gigantes que pulsam com o volume no máximo. E quero-te. Um pouco mais vertiginoso do que isso. No meio das insónias, dos versos, da embriaguez, do pudor e das cortinas. Quero-te para além das coisas juntas.

Ah, escreve-me, escreve-me e eu cedo, sucumbo aos intuitos viscerais mais ávidos e profanos. Escreve-me com as palavras mais sedentas e vermelhas, violentas, dóceis, fugitivas, antagónicas. Dá-me um significado ambíguo e usa-me em qualquer contexto verbal ou construção semântica. Entrelaça-me nos teus desígnios e consome-me milhares de vezes sobre o zénite incerto da decência.

Quero-te para além de tudo isso. Quero-te acima das folhas de poesia, dos cigarros, dos pianos, das viagens, do cinema. Quero-te assim estupidamente, descompassadamente. Até não suportar mais o querer-te tão desenfreadamente.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

(Do outro lado do espelho havia jardins e ópios de poesia...)

Hoje apetecia-me ir dançar para o parque, debaixo deste sol que nos acolhe as pétalas dos sorrisos, e passear-me com os pés descalços à procura do teu rosto por entre as árvores, enquanto a névoa das ausências não se abate ainda sobre os nossos corpos, e eu colhia o amarelo das flores e das manhãs como quem acolhe uma criança no seu regaço, e alguém me acariciava a pele a descoberto enquanto me fingia adormecida. Eu não dormia, repetia mentalmente os gestos e as incongruências para as recordar muito mais tempo na indefinição de mil reflexos, e construía as ideias em hierarquias para saber sempre o que dizer a seguir, e tu acordavas-me devagarinho e dizias palavras que eu já sabia, e eu limitava-me a ficar assim a olhar para ti, porque já tinhas dito tudo o que importa. Permitir-me-ei a essas fantasias só mais uma vez, enquanto nos mantivermos lúcidos de nós próprios, para continuar a aprender imensas coisas, como no tempo em que as conversas eram um corpo interminável, onde as minhas frases faziam sentido porque se embebiam da clareza dos mais sábios, porque tu nunca falaste como os outros, e os outros olham-te e invejam-te, invejam que sejas essa voz imensa, sedutora e firme, porque tu nunca o ambicionaste ser, como eles ambicionam secretamente ser o que tu és. E tu és. Por isso sê-lo, e deixa-me ficar a ver, deixa as pétalas caírem sobre os meus cabelos, deixa a musica tocar à nossa volta enquanto eu leio nos teus olhos aquilo que eu já sei de cor, e me consinto a ser incoerente e tonta, e vamos sair para nos divertirmos a medir as reacções de quem não sabemos, e ensina-me, ensina-me, vamos passear no parque e dizer asneiras, leva-me a conhecer o mundo e as pessoas, porque olha, na verdade eu não sei tanto sobre tantas coisas.


(Do outro lado do espelho havia jardins e ópios de poesia e musica de filme e a forma das palavras e a escuridão dos gestos e a volúpia e a anestesia e o remorso e a sofreguidão... por isso é que a Alice nunca mais de lá voltou.)

quarta-feira, janeiro 23, 2008

isso...

E sem ter tempo de organizar as ideias nas diferentes secções do intelecto, desato a proclamar as futilidades que erguem os discursos, o que as pessoas estão sempre à espera que a gente diga, para nos acharem dignos e banais, para nos entenderem então como a eles, submissos e ordeiros, na sua plena satisfação até certa medida, na sua imensurável preguiça de sobriedade em demasia. E por ora vou gastando, passiva, quiçá ordeira e submissa, as palavras nos contextos errados da semântica, nos equívocos grosseiros das banalidades, quando o mais importante das metáforas se esvaziam inúteis em suspensos das memórias, e passam assim carentes os dias e as horas, a desenharmos círculos perfeitos no chão à nossa volta, com as palavras interditas a ecoarem nas paredes da indecisão. E escrevo aqui o que me apetece e não me importo, porque ninguém me impede e ninguém percebe, ninguém tem nada que falar do que a minha alma pensa, logo ela que nunca soube ao certo o que é pensar, vagueando à deriva no backstage de outros trovadores, em pedidos ao acaso que nunca chega ou chega sempre em atraso, visivelmente louca, demente e incauta, claramente desprovida de interesse para as massas sensatas e ordeiras, esses filhos da tv e dos clichés voláteis, enfim, assim sempre me deixam respirar em paz. Ou talvez seja melhor morrermos, fingirmos que tudo não passa de um equívoco, porque a idoneidade das coisas é uma falácia, o que sobrou para vivermos neste planeta é o acaso, senão o acidente, pura desorientação talvez, de às vezes encontrarmos em algum lugar alguém que valha a pena.

E desculpa. Sou ilógica e incoerente e insubmissa, e mais uma data de termos irritantes, e se me apetecer vou sim roubar-te um beijo amanha à tarde e dizer que me enganei no manifesto, e depois vou desatar nas futilidades que já expliquei inexplicáveis. Desculpa. É que desconcentras-me por inteiro quando começas a invadir os meus olhos com os teus, e mostras que te ralas mesmo, e que importa sim, tudo isso que tu sabes. Mas, enfim, para que servem as baladas que escrevemos, se no final todas as palavras se tornam dispensáveis e neutras.





domingo, janeiro 13, 2008

Sermos

Vamos embriagar-nos nos ecos da memória, vamos fingir que existimos apenas nós e o firmamento. Ou então não me conheças de todo agora, finge que me inventas de novo nos teus sonhos, e dançamos, irrepreensíveis, sobre as incoerências. E então olhas para mim pela primeira vez. E eu sei que os meus olhos se inundam dos teus. Perdidos na imensidão da tua voz de açúcar, esgotados num silêncio que tem tudo de ensurdecedor como de delicado. É nele que habitam as frases que ecoam baixinho na minha cabeça, as que guardo para te dizer um dia, sob a forma de um poema, quando for maior que aquilo que sou agora, e não for mais dormente de mim mesma.

Contrario-me constantemente nos olhares e na razão, e depois consumo analogias compulsivamente para não pensar mais nisso. Eu sei, é um defeito que eu tenho às vezes, e tu sabes disso porque já me sabes de cor. Procuro a poesia escondida nas coisas concretas. Rio-me de ti, para engolir a vertigem, cá dentro, e atropelo as flores que nasceram no chão na tua ausência. Não tenho mais nada a dizer agora, porque não me interessam mais os paradoxos. Fala-me de ti. Não penses demais no que me vais contar, eu só quero ficar assim, a olhar para ti, sincronizada nos movimentos dos teus lábios. Ensina-me a não ter medo de cair no chão que piso, inventa-me, inventa-me. Segura a minha mão agora para que eu o saiba.

E eu não quero saber mais das fogueiras de gritos dos fantasmas que invadem a manhã. Desde que me concedas essa languidez do teu perfume, e me leves a conhecer muitos sítios que mais tarde não me deixem esquecer nunca que existimos. Juntos. Só quero descobrir que o teu odor é um presente por entre a minha roupa, e que deixaste a tua paz em mim quando saiste. E quero que me digas para ficar. Para parar aqui. Enquanto me beijas os cabelos. Quero que o digas.

Vamos inventar as razões mais assimétricas que possam existir para continuarmos assim sem largar as mãos.

domingo, janeiro 06, 2008

Pandora's box

E se o bater das asas da borboleta for demasiado rápido? Tornando-se talvez tão poderoso que desperte as imagens oníricas que nós tentamos esconder de nós próprios. Aquilo que não queremos evitar mas evitamos, até não conseguirmos mais fingir que não o somos. Mas somos. A caixa de Pandora. À minha frente, esperando estaticamente que eu não consiga ignorar mais as subtilezas. Guardemo-nos dela. Assim saberemos sempre o caminho de volta.

Mas existe essa eventualidade. Um pouco obsessiva demais para que eu saiba geri-la na minha cabeça. É um “talvez te dê as mãos porque te quero sem normas e sem nexo” que me faz divagar e seguir em frente pelo caminho ambíguo das coisas erradas. Ou que admitimos como erradas, para fingirmos sermos certos. Ou apenas porque eu não me contenho às vezes. É isso. Deveria ter seguido o lado coerente, se não fosse a Pandora e o Tyler Durden a gritarem-me aos ouvidos. Não segui. Eles gritavam demasiado alto. E depois?

Simbiose de ideias. Refúgios. Abraços apertados. Entrelaçar os dedos. Pequenas coisas. Deliciosas pequenas coisas. Eu a sentir-me bem com isso.

(E vamos só tomar cafés e falar de madrugada e sorrir para dentro como quem confia.)

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Feriazinhas em casa. Na verdadeira casa. Onde agora cheira a receitas natalícias e os radiadores ligados contrariam o frio das ruas. Acorda-se tarde.

É bom estar aqui. Os dias são mais compridos e os lugares são os de toda a minha vida. Mas não sei porquê, sinto sempre a falta do caos. É inevitável. O meu caos lá em cima. Os passeios nocturnos, as conversas de café do outro lado da rotunda, a confusão diária na casa-corredor com a campainha a tocar repentinamente e os amigos a entrar e a sair. A faculdade e a sua aura fantástica. As noites na jam, as madrugadas excessivas. As viagens de metro, por vezes sem destino. Os desabafos na varanda com a guitarra. Os convites tardios, o abraço novo de um alguém mais especial ou diferente. Como eu gosto. Como eu preciso sempre, serenamente, sofregamente. Cá dentro, no coração. Na alma, sempre a alma em desassossego.

Revejo mentalmente as últimas semanas. Percebo que tenho feito demasiadas coisas em tempo reduzido. Estudar também, por incrível que pareça. Mas isso não é motivo de grandes recordações. Outras coisas sim. E as recordações sucedem-se em catadupa. E de noite vou dormir e vem tudo ao de cima. Porque quando dormimos não negamos as obsessões que a inconsciência reclama em nós. Na inconsciência damos sempre tanto de nós...

Li algumas linhas de Bernardo Soares no outro dia. Ele falava sobre ela, a inconsciência. De uma forma sublime e dócil. Talvez devamos deixar-nos levar por aquilo que ela tem para nos dizer, às vezes. Alguns desatinos, alguma asneira na escuridão. Darmo-nos aos outros sem fazer perguntas. É daqueles irracionalismos que nos sabem bem à alma incerta. Eu acho que tenho feito a minha parte.

Tenho sono. Apaga a luz. E ah... Bom Natal :)

quarta-feira, dezembro 19, 2007

A toca do coelho branco da Alice (or whatever...)

Refúgios. Para quê? Se depois vais ter de sair cá para fora na cruel imensidão dos teus receios e deveres… se depois de te prenderes a algum momento no tempo vais sempre desejar não o ter feito, não te teres deixado levar pelo delírio do mundo que criaste do outro lado do espelho. Dúvidas existenciais. Porque não paraste por aqui? Só querias ver onde podias chegar com essa ideia absurda de encontrar alguém que percebesse a tua língua, a tua música. Por quereres saber mais de todas as coisas, por quereres conhecer mais de ti mesma. Apagas as regras que tanto detestas. Lanças os dados e achas piada à coisa. Por isso entraste pela toca do coelho branco sem olhar para trás e começaste a deslizar demasiado rápido. Embebida em versos, gravitas em círculos até alcançares uma quimera febril que estranhamente te agrada. E não consegues sair de lá mais agora. O coelho branco era o teu passaporte de fuga e tu já o perdeste de vista há muito. Na etiqueta do frasco aos teus pés lê-se “bebe-me” e tu obedeces sem rodeios, sem critérios. Sem vertigens, certo?...


E quando vais a dar o jogo por terminado sai-te uma rainha de copas que te trespassa as defesas. E cais no chão que alguém pisou para ti, para que sentisses, para que aprendesses. Como sempre acontece nos mundos absurdos que invades constantemente.


É a lição de voo número um. Não perder o chão debaixo dos nossos pés.


“Would you tell me, please, which way I ought to go from here?”
“That depends a good deal on where you want to get to,” said the Cat.
“I don't much care where…” said Alice.
“Then it doesn't matter which way you go…” said the Cat.
“…so long as I get SOMEWHERE.” Alice added as an explanation.

Lewis Carroll
Alice no País das Maravilhas















domingo, dezembro 02, 2007

A análise e a submissão.

Almas analisadas e dissecadas até á exaustão e ao absurdo. Ad eternum. Ad nauseum.

Casas germinadas. Pessoas germinadas. Aquelas que são sempre o apêndice de alguém. Odeio casas germinadas.

Sou abordada por pessoas de quem não vejo o rosto, falam de coisas cansativas sem nexo. Não tenho tempo para tentar encaixar as peças do enredo. Não tenho tempo para analisar os contratempos e os compassos de espera. Espero impacientemente o próximo comboio.

(Convites tardios, olhares desarrumados. Aqueles locais, àquelas horas com aquelas pessoas.)

Visto-me da cor dos prédios e procuro leis de anatomia. Leis do cosmos. As que definem a cor dos prédios. Não, as que definem as pessoas. Analisá-las, dissecá-las. Às almas. A missão desses senhores de gravata às riscas do jornal das oito a fazer perguntas. Odeio pessoas que analisam.

(E estava muito escuro ali dentro, e eu perguntava as direcções certas para chegar a algum lado, e tu dizias frases que eu não entendia, pois eram perfeitas e simples, e eu ouvia-te a ti, só a ti. No meio da escuridão das telas mal pintadas.)

Gostava de ser outro tipo de gaja. Outro tipo qualquer. Daquelas que complicam sempre tudo e ficam sempre bem nas fotografias. Daquelas que falam abusivamente como quem toma cafés e copos de água e lêem a Margarida compulsivamente. Queria ser, só por um dia, para ver como era. E depois voltava à minha pele e sustinha a respiração. Como fazemos antes de mergulhar na serenidade do vácuo.

Não compreendo as pessoas que lêem a Margarida. Não compreendo como fazem para perder o chão.

(E o copo a cair no chão sem querer, e tu sabias que o teu olhar me apertava contra a parede…)

Mas eu não sou esse tipo de gaja. Não sei sequer se sou algum “tipo” de gaja. É o cúmulo da debilidade humana, banalizar as coisas. Tipificar, analisar. Os idiotas dos nossos modelos são a personificação do tédio. Só que usam a roupa dos estilistas, por isso parecem atraentes.

A mim isso não me parece nada atraente.

(E a vertigem a abater-se em mim em milhares de ecos, e a minha voz a tentar conter a submissão dos gestos, e os pontos de fuga cada vez mais ocos e distantes... E as minhas mãos a afastar as tuas mãos, e eu a não querer perder o chão e a razão...)

A ponte à hora certa. A sair do Porto, quando a noite nasce cedo. Luzinhas no escuro invasoras da privacidade de pensamentos dispersos. Além mais ao fundo, casa. No final da estrada.
.
E hoje não me apetecia nada voltar.

sábado, novembro 10, 2007

Mutações

Lembro-me de quando era pequena e tinha caracóis despenteados. Ainda mais despenteados. A vida era simples pela objectiva do meu limitado campo visual abaixo da cintura dos adultos. Os dias chegavam para tudo e a noite era serena no meu cobertor em tom azul e rosa creme e bege deslavado. Não havia problemas porque eu não os entendia e os meus bonecos de pano eram os interlocutores perfeitos de conversações intrínsecas. E sentia-me protegida pelo pai de barba farfalhuda e pela mãe babada. A toda a hora.


Agora acordo de manhã e nunca dormi as horas todas. Adormeço à noite e nunca vivi as horas todas. O cobertor mudou de cores e mudou de cama e a cama é outra assim como a casa o é também. Bonecos de pano viraram gente que conheci com o passar das primaveras e com quem divido a rebeldia dos dias. Alguns assumem a forma de amigos/ interlocutores perfeitos/ preciosidades. Desafiam-me a prender-me cada vez mais a eles, dia após dia. Graciosamente, gratuitamente. Outros tentam agarrar-me com falácias e mentiras e tentativas de arame farpado. Esses são os que não me interessam. Mas agora já não estou protegida a toda a hora desses que não me interessam. E o arame farpado deixa por isso algumas marcas de vez em quando.


Gostava de não ser demasiado exigente com a realidade. Mas o mundo era bem melhor quando eu brincava com bailarinas de papel com asas. Pelo menos tudo parecia ao alcance do meu entendimento, da minha receita estereotipada explicativa das coisas. Agora nem sempre percebo todas essas coisas. A receita passou do prazo de validade. A protecção absoluta fugiu com ela, restaram tentativas frágeis de consolidação emocional e racional. De notar que pus o emocional antes do racional. Ponho sempre, deixo sempre esse lado mais a descoberto, por entre as palavras curtas e desordenadas que saem nos momentos de difícil dicção e compreensão.


E depois há alguém que me diz que ainda sou uma criança pequena. Eu digo que sou demasiado pequena para as minhas aspirações. Mas quem me dera ser realmente pequena. Poder voltar a casa e fazer birra de mimos, e aninhar-me no colo de quem nunca pede nada em troca. Hoje toda a gente pede algo em troca. Hoje as palavras não significam o que querem dizer por si mesmas. Porque há sempre alguém que viola o sentido das palavras para satisfazer caprichos. Por isso é que o mundo se virou contra si mesmo empunhando a bandeira das frases erradas. Não era certamente isto que o arquitecto do cosmos previa ao projectar-nos.


As nuvens também me pedem algo em troca, habitualmente. Tentativas de construções de figuras oníricas através dos seus contornos. É um pedido delicioso, o delas.


domingo, outubro 28, 2007

Let's dance

Escolho um banco atrás das janelas e das portas de vidro embaciadas. Acendo uma vela, deixo o mundo do lado de fora. Alguém se sentou à minha frente e eu só lhe vejo as sombras da cara e as mãos pousadas no meu copo e no cigarro. Dói-me a cabeça de não me lembrar o nome, agito-me freneticamente no silêncio das falas. Ele estende-me a mão, a que repousava no copo, com a outra puxa o cigarro inexistente. – Queres que te conte algo engraçado? Respondo que não, não, não suporto mais coisas engraçadas e fúteis a entrarem-me nos ouvidos. Ele levanta-se sem o copo e o cigarro e convida-me para dançar. – Mas não há música, digo eu, incerta, frágil. – Não faz mal, tu também não estás aqui.

Escolho um banco atrás das janelas e das portas de vidro embaciadas. Acendo uma vela. O mundo está lá fora à minha espera.

Vamos dançar por agora.

sexta-feira, outubro 05, 2007

Noite

Deixaste-te cair no meio da inércia que te despenteava as horas e as ideias, a solidão adiada para outras vidas que não esta por onde te deixas emergir agora. Cantaste baixinho, onde não te ouvissem dizer asneiras, assim como largaste de vez o choro quando já não aguentavas mais fingir que não sentias. Refugiaste-te nos vazios, longe dos outros, dos confrontos, das mentiras, dos reflexos escuros da janela que te recordavam o Outono a invadir a rua, afinal não era só dentro de ti que a estação mudava e as flores morriam, os estilhaços de ti em ti, no chão dos pés e da calçada pisam agora os dias de Verão num para sempre inadiável. Anoitece dentro de ti e a lua cheia é alucinação. Mas tu não sabes disso. Sobra-te a tendência enérgica para a vertigem de ti nos outros, na embriaguez pálida dos teus sentidos em êxtase, no doce soar da guitarra que tocam por ti, porque os teus dedos ainda não se habituaram ao insubmisso dedilhar das cordas e dos sentimentos. Porque nunca to permitem. E tu não te apercebes agora que te afastaste de casa sem olhares para trás, porque a tua rosa-dos-ventos não faz mais algum sentido, como nunca o fizera no passado. A tua mente é um caos e tu fazes amor com ela, enquanto não reage às tuas ocas investidas. Vasculhas as manhãs das palavras interditas, falas contida para alguém do silêncio que vês lá fora. Anoitece, já disse? Aí dentro, mais que nunca. E pouco te importa, porque já o sabias, em antecipação às pautas da melodia.

quinta-feira, setembro 20, 2007

Nas tuas mãos

Anda. Não digas mais nada. Ensina-me apenas o teu nome. A tua voz. O meu retrato. E eu sou pequena sim. E tu olhas-me e dizes que sou estranha. Mas a chuva não cai hoje deste lado. Por isso não lavamos as nossas mãos. Por isso a minha estranheza permanece.


Mas pintei-te os traços sem saber o nome dos pássaros ou das enseadas. E com os meus pés na relva desmaiei entre os teus dedos. Com os meus impulsos confiados à tua sensatez. E um nome que não sei de cor, e uma viagem por fazer, que me quebra os vazios entre os dedos. É uma nuvem daquelas onde dá para nos sentarmos a observar a praia e o murmúrio da cidade. Uma espécie de refúgio em movimento. E flores coesas no chão, e os meus passos pequeninos pelo meio delas.


E anda, não digas mais nada, deixa-me inventar-te. E ensina-me o teu nome sempre que quiseres, sempre que puderes.



sexta-feira, setembro 07, 2007

CRONOFOBIA

E sinto-me cronofóbica porque receio compulsivamente o tempo que atrofia nos impulsos do relógio. E sinto-me frágil, desajustadamente frágil, como a canção que se entranhava outrora nas paredes, como se delas precisasse num rompante de vontade que devasta à noite as telas inventadas. Mas o sol desperta um novo dia e sei-te agora inevitável. Uma presença súbita da qual não abdico.

E vejo o tempo definhar nas minhas mãos vazias, não sei como o controlar. E esvai-se em sangue uma ferida aberta cedo demais, que as evidências da vida não ensinam a curar. É um fardo perverso o de ter de me suportar. E saio de mim e mergulho no que sou. Cada vez mais fundo. E mais, e mais.

E eu não sei quando deixei de vislumbrar as linhas que teciam a razão de todas as razões. Os ponteiros arrastam-se eternos em buracos negros de um infinito inteiro que me esgota, e como esgota… As palavras dóceis e a sensatez… Só o pulsar das veias me acelera em milhares de anos, em milhares de vezes, em mil espelhos por cima do meu corpo, violando mil vezes as sombras onde o luar se detém maliciosamente à espreita. É onde não temo a curva do tempo pois ele é de uma cor voraz que não existe. E as mãos perdidas por entre as nossas sombras não estão vazias nunca mais.

E afinal o tempo é o que fazemos dele.

sexta-feira, agosto 31, 2007

Desvios de percurso

A casa ainda não tem os meus cheiros nem dedadas minhas no vidro das janelas. Não tem as minhas coisas por todo o lado, na minha organização desarrumada, não tem incenso e fotografias, folhas de papel metade escritas, metade desenhadas. Tenho de a fazer um hábito meu, eu acho. É um processo, só mais um, a vida não é mais que uma dança desvairada impulsionada por processos. A maior parte deles incompreensíveis. E eu procuro refazer tudo como primeiras vezes. Pequenos nadas mais uma vez (como eu queria hoje refazer-te com as tuas mãos nas minhas), pequenos nadas de luas cheias e passos dados na escuridão. Pequena, eu. Sempre tão pequena e tão cheia de medo de grandezas.

E a paisagem vai mudando lá fora, consoante o dia em que me vejo. E os receios desaparecem na neblina de madrugadas deliciosamente límpidas, embalados em sons distantes da memória em ecos. Ecos de sinais e risos, um pouco por todo o lado, no latejar da mente, na mente das minhas veias. E há ainda a novidade do tecto e da varanda da sala e da luz que de lá emana. Para além da novidade de quem eu ainda não sei explicar.

E vou-me habituando às paredes do quarto e elas à minha presença. E páro de ser esquizofrénica por um bocado, alheando-me numa falha da memória que me dá um certo jeito agora. Páro de pensar demais no que não vale mais a pena, ou nunca valeu decerto. Acertei, não foi? Talvez tenha sido eu a inventá-lo apenas. Talvez tenha sido mais um engano de percurso, daqueles que se eternizam sempre que os queremos esquecer por baixo da inútil metáfora do inconsciente.

E largo propositadamente baladas fictícias que certamente construí outrora para me distrair. Ilusões debaixo dos lençóis dos sonhos. Aqueles que perdemos sempre cedo demais, perto demais. E mais uma vez sei-o tão inevitável como nós próprios.

E obedeço aos desígnios de um deus que não conheço. Para poder dizer que não fui eu que o escolhi.

E invejo a razão de quem a não tem, para me alegrar por a perder de vez em quando agora. Porque há coisas boas que acontecem quando não nos medimos por dentro. E há um aroma diferente a pairar no ar, dá vontade de ficar por lá mais um bocado, à espera, a ouvir e a cantar baixinho, com a almofada a acariciar-nos os sentidos enquanto nos descobrimos. E apetece-me criar hábitos velhos com pessoas novas. (E apetece-me dizer a alguém: volta depressa...)

(E no início eu pensava que me doíam as coisas deixadas em suspenso. Aquelas que nos fogem sem nunca termos largado as mãos…)

domingo, agosto 26, 2007

qualquer coisa...

Mil vozes. Mil vozes me assaltam num impetuoso trovejar de ecos. Procuro ouvir, talvez sentir, um simples murmurar de afago far-me-ia desvanecer em tempos remotos. Hoje não. Deixo aos poucos de admitir a misteriosa força das palavras interditas, penso nisso permanentemente. Porque é o uso das palavras que nos define como humanos, mas apenas a sua transformação em reais actos de mudança nos tornaria maiores do que isso. Elevando-nos à categoria de heróis ou monstros, fora da esfera de nós próprios. Atitudes que tomamos delineiam-nos os traços, as certezas e indecisões, a alma, pequeno e destemido conceito de longo alcance. Para alguma coisa nascer no meio do caos. E o que resta para as palavras? Talvez uma intenção de voto, obscura e frágil, a dança da solidão quando só elas sobram de alguém que um dia foi alguém. Palavras são um idealizado cenário de combate, a banda sonora de um filme por fazer. E eu resigno-me à sua fragilidade opaca e breve. À sua placidez insustentavelmente ténue, pois vejo-as por vezes tão terrivelmente ocas e vazias. As vozes esfumam-se em fragmentos confusos à imagem de um absurdo pensar que não se deu, que ninguém viu. É quando as pessoas mais doem em nós. Palavras são frágeis demais para que as queiramos violar constantemente, para que as queiramos experimentar em etéreas danças sem retorno, por cima de alguém que nos tocou. Ecos de passos de dança, as palavras. Delineados pela nossa voz.

Como eu gostava de não depender inevitavelmente delas.

segunda-feira, agosto 20, 2007

hum...

Acordo de manhã e o relógio está parado desde as tuas mãos nas minhas. Dói-me a cabeça permanentemente. O livro do Saramago serve de base para copos. Amanhã leio a última página, sempre. O telefone toca mas não é ninguém. Diz-lhe que não estou e que já vai tarde. Não me apetece vender frases a ninguém. Mas há tanta gente com quem partilhar frases.

E ontem sonhei que caia em queda livre de tectos alheios. Mas sabia tão bem como chocolate numa depressão.

Aconselharam-me a ser o mais racional possível. Rasgo papel, papel, restos de fins encantados, gelados em cone. Vejo as conversas dentro do carro e a camisola às riscas, metodicamente. É isso que importa memorizar.

E estou cansada, tão cansada. Não me apetece escrever mais nada hoje. Porque aquilo que escrevemos não é mais do que isso, aquilo que escrevemos. E hoje não me apetece ser mais do que isto.

Não, não é mais do que isso, aquilo que escrevemos.

(Espera, esqueci-me de reabrir os olhos...)

terça-feira, agosto 07, 2007

keep it simple...

As palavras que largo na voz são como ecos de mil lugares. Ou de um só lugar. Perdi-me nas entrelinhas fulgurantes dos meus perpétuos despertares e adormecimentos. Com lápis de cera e um papel usado desenhei o mundo à minha imagem. E ele era de planícies e sobreiros e a praia ali a um passo, e era os reflexos do mar à noite e na noite imensa dentro de mim. E era como uma vontade de ir mais além sem saber do chão que vou pisando, até chegar onde não existe mais chão porque o chão fui eu que inventei um dia para nunca mais cair no chão que não havia. Não existe chão agora, nem tectos ou muralhas. Apenas a planície e o acordar estremunhada com uma musica que cheira a café com leite e à matéria solúvel de que os sonhos são feitos. E sorrir sem saber porquê à primeira dança no areal. Com hesitantes passos de bailarina.

E as minhas incongruências são como ecos de mil lugares. Ou de um só lugar. Onde as ondas afagam gestos que nunca foram tão meus como os sinto agora pertencerem-me. É a placidez de um mar que acolhe os meus destroços. E escrevo-me de novo num tempo dócil em que as palavras corriam sem se gastarem. E sou eu reflectida num piano que inventei na ponta dos dedos, em notas soltas de uma musica que já quase sei de cor. Existe sempre alguém que canta outra canção. Espero pacientemente a próxima partitura, espero ler no meio dela, verso a verso, o meu próprio coração.

Se perguntarem por mim digam que voei.


@ Alentejo

sábado, julho 21, 2007

Rastos

Deixo sempre um rasto de mim. Não importa qual a vela que apago num sopro para não me deixar intimidar com as sombras que ela invoca, deixo sempre um espaço de mim mesma perdido em introspecções falhadas. Em rastos. Fragmentos de mim espalhados nos dias, nas horas que deixo passar numa inércia lancinante que esfaqueia o coração pela inércia das palavras. Tento voltar a pôr tudo no lugar. Permito-me mentalmente a mensagens sábias, quem realmente procuramos senão nós próprios, algum dia conseguiremos saber da matéria que nos ergue. Faço constantemente essas perguntas, cujas respostas nunca recebo em troca, flutuo passiva nesses muitos nadas de vazio e imprecisão, procuro-me nos outros. Absurdamente, inevitavelmente. Procuro-me nos outros, nos muitos nadas de todos os outros. E por vezes, em alguns passos, mais ou menos errados, mais prováveis ou menos deleitáveis, encontro a autenticidade que é a deles. De alguns dos outros, poucos senão nenhuns, mas encontro sempre um alguém que me coloca ante mim mesma, ante as minhas divagações irrealistas que caoticamente me definem. Existe sempre alguma luz no fundo desse túnel que percorro. Alguém me inquieta sempre, daquela forma boa de se inquietar uma pessoa, ou nada do que eu falo agora faria alguma vez algum sentido. Quando os há, esses alguéns, ilhéus, cadências, infinitos particulares, faço-os minhas descobertas, beijo a madrugada que mos trouxe, bebo um travo irrepetível dessa autenticidade intrínseca e abro as janelas de par em par, por onde espreita um novo e desejado amanhecer. Oiço realmente o que eles têm para me dizer, deixo-me invadir pela ternura que transpiram. E depois apetece-me cair sem saber porquê. Talvez para me levantar e fazer tudo de novo, num infinito recomeço repetido até à exaustão, porque o princípio das coisas parece ser sempre a parte mais gostosa da viagem. Apetece-me chegar perto e sorrir sem razão aparente, chorar porque a alma se sente a transbordar de impulsos e isso às vezes também dói. Às vezes é assim. As lágrimas deixam-se correr e não é suposto travá-las, mas deixá-las pingar placidamente na ganga das calças e olhar para a marca que lá deixam. Rastos. Porque ás vezes é só isso o que mais precisamos. Ver o rasto que deixamos nas pessoas. Ou o rasto que as pessoas deixam em nós.

segunda-feira, julho 16, 2007

What a nice conversation

Disse que me tinhas acordado cedo demais nessa manhã, quando nem dormia. Disse que me sentia demasiado frágil para a leveza dos dias que corriam. Disse que me atrevia a apontar a minha inércia como culpada. Ou isso ou a falta de borboletas no estômago, a falta do arrepio na pele. Disse que não queria pensar mais nisso agora. Disse baixinho que estavas diferente. Disse-te categoricamente que não, não era eu que estava diferente. Disse que tu não dizias coisa com coisa. Disse que me doíam os vazios entre os dedos, os vazios entre tudo o resto. Disse que a alma também me doía, um bocadinho. Disse que não fazia mal, porque o dia seguinte chegava sempre a tempo e horas de a sarar. Disse que não se passava nada. Disse que já nem me lembrava mais das fogueiras da nossa ausência. Disse para mim mesma que mentia. Disse que me tinha esquecido das chaves de casa. Disse para vires comigo, porque tu as tinhas sempre no teu bolso. Disse que não devias entrar, ou eu não te saberia deixar partir. Disse várias vezes isso, sem que te deixasse ouvi-lo. Disse num impulso que te gostava muito. Disse para não ligares ao que a gente vai dizendo à toa. Disse que tudo estava bem, desde que me beijasses os cabelos como se eu fosse pequenina. Disse que eu também te sabia beijar os cabelos como se fosses pequenino. Disse para ficares mais um pouco no sofá, a falares para mim na nossa língua cósmica. Disse que afinal era melhor não, porque o chão já me fugia dos pés. Disse que não queria mais acreditar nos teus lábios nos meus cabelos, porque me fazia mal, porque me fazia bem demais. Disse para me largares no chão que não havia. Disse para cantares. E para te calares de vez.

Disse muita coisa no habitáculo ilógico da minha mente :)

terça-feira, julho 10, 2007

­­­­­­­­­­­­­­­E pudesse eu cantar mais alto para que me ouvissem… Mas a voz falha sempre quando o vazio se instala em nós. Pudesse eu guardar cada esquisso desta peça de teatro onde estranhamente me insiro nos dias que vão passando e nas praias adormecidas por onde vagueio. Pudesse eu ser maior, mais e melhor do que aquilo que vejo ao espelho, pudesse eu ter forças para combater a doce inércia e a frívola distância que nos corrói por dentro. Acordo de manhã e sinto que é hoje, mas nunca parece ser o dia certo para voltar. Gravito suavemente por entre as nuvens do meu módico destino em busca de respostas para perguntas que nunca quis fazer, falo para pessoas que nunca pensei amar. Mas amo, e amo cada vez mais menos pessoas, porque o amor é libertador, apesar de o saber também perigoso demais para quem o vê apenas como uma falácia. Mas eu amo, e dou-me forte demais quando nem forças tenho para suportar a insustentável leveza do meu próprio ser. Dou-me assim, para que os outros vejam quem sou. Quero abrir a concha de vez e abraçar o mundo num sorriso, traçando a pincel um novo esboço do que poderá vir um dia para me fazer feliz. E choro sozinha de tristeza e emoção recordando pequenos sentidos das pessoas que quero. E desespero sozinha e falo alto para alguém que não está perto nem longe, porque nunca esteve e nunca está, e procuro esse alguém em páginas remotas da minha história que não entendo. E canto e sorrio. Sorrio sempre, mesmo quando estou triste.

E soubesse eu o que é a vida… e tivesse eu sempre a coragem nos momentos certos, e não deixasse eu sempre a oportunidade passar-me ao lado. E soubesse eu a raiz dos mistérios que nos erguem a todos nesta vida. Fosse eu outra memória que não a tua! E conseguisse eu dizer alto o quanto amo as pessoas que hoje me abraçam…

quinta-feira, junho 28, 2007

vertigem.

Desmaiei no piso 1 da madrugada com os pés frios, gelados da humidade entranhada em mim como espasmos, nos meus ouvidos, na minha voz, num cenário de palavras obcecadas e ruídos caóticos onde os pássaros não voam e a morte adormece nua debaixo das árvores. Menti poemas ao destino em jeito de desafio aos deuses, rasguei os acordes furiosamente porque estavam errados, eles sempre estiveram errados, e eu rio, rio deles porque me fazem cócegas nos pés frios e nunca falam a minha língua, e eu entendo-os mesmo assim e deixo-me levar pela canção, e eu rio porque não quero entender mais e apetece-me tanto rir e as cócegas não param e a vertigem em mim é vertiginosamente frágil. São 7h da manhã outra vez e a praia está deserta e o céu é estupidamente claro a essa hora, cheira-me a álcool que entranhei como beijos, embriago-me em palavras que já disse obcecadas, falo para pessoas estranhas que me ensinam a majestosa língua da redenção. Alucino perigosamente com passagens de textos orquestrados por mim em ti, depois olha, imagino divertida que és apenas um holograma da minha mente criado para me distrair da rotina infértil, e então eis que te consumo, bebo-te avidamente como bebo Nirvana e chávenas de café e divagações alheias e o Jazz e as telas dos outros dias e o cheiro do mar infiltrado em mim porque são drogas onde viajo enquanto posso e sinto, porque até as mais pequenas coisas me fazem renegar a irmandade televisiva da alienação do ser, porque as pessoas falam e eu compreendo tudo o que me dizem na sua língua mágica e elas não me julgam e eu amo-as, amo-as por isso, com as suas coisas simples que me fazem pensar que a vida é um presente e a morte dorme aniquilada debaixo das árvores, caída e nua para todo o sempre. E os pássaros sobrevivem e chilreiam. E a imortalidade é minha por três segundos que sejam.

quarta-feira, junho 20, 2007

Poemas e fungos

Não era suposto ter chegado onde cheguei. Não era suposto ter-me desalinhado dos sinais de luz que delimitam as verdades racionais em mim até me ver assim neutra e fragmentada. Olha, vou contar um segredo que toda a gente vai ouvir. Ainda bem que me perdi no teu nome. Mas hoje eu não sei se sei que nome é esse. Não sei a chama do fantasma que me rouba as palavras de sensatez, subvertendo-as a poemas vagabundos de sedes infiltradas no meu sono. Só sei que nada sei pois não me ensinaste mais nada hoje. E eu tenho sede de aprender. Tenho sedes a mais dentro de mim.

Sinto sobre os meus ombros demasiadas condições, demasiados compassos de espera. Procuro significados maiores nas coisas banais do dia-a-dia, mas já não consigo ver para além de somas menores. Pedaços do que nunca foi, do que foi apenas um suspenso entre meias vidas, meios seres, meios nadas que significariam muito. Hipoteticamente, claro, significariam muito. Odeio tanto esses intermédios do que nunca é e nunca deixa de ser. Odeio a vida. Porque somos sempre apenas metade de nós próprios, metade do que queremos, e eu odeio isso, odeio, odeio-o com todas as minhas forças. Odeio ser metade de mim mesma por não me deixarem ser mais dos outros. A realidade nunca deixa. Por isso a realidade nunca é de confiança. A realidade nunca é verdadeiramente real. Não é, pois não?

Evito pensar na hipocrisia que me cerca para não tombar de vez no fundo do poço. Não me apetece escrever bonito hoje. Tudo não passa de uma fusão de inconfidências mal confidenciadas de pessoas falhadas que não se confiam. Tudo não passa de uma encenação depravada e ridícula, um espectáculo freak no meio de uma arena. Para o público se deleitar a ver. É a realidade. É uma subversão grosseira a condutas estereotipadas e auto-flagelantes. É uma ilusão. É uma merda. É um fungo viscoso e medonho que se cola à fragilidade das palavras supostamente autênticas que pairam no ar como flores da Primavera. E eu não tenho forças para destrinçar as verdades que importam. Sinceramente hoje nada de real me importa…

E o pior de tudo é eu saber que minto quando o digo. Porque eu preciso de ocultar os fungos com as flores de Primavera que pairam no ar, e ver o mundo crescer em mim na pista de aterragem que revejo à minha frente. Eu preciso disso, não entendes? Preciso de acreditar em poemas e nadas que significam tudo. Preciso de ouvir aquelas músicas da forma mais simples que é a perfeição de todas as coisas, e saber que as confidências podem ser a coisa mais bela do meu dia. E tudo estará bem, eu sei. Se ainda sobreviver com as palavras no meio do caos. Ou então tudo voltará atrás. Ao principio. À vulgar banalidade das coisas menores que é o grosseiro espectáculo das nossas vidas.

sábado, junho 16, 2007

Intersecções I

Ele escrevia-lhe todos os dias. Guardava as cartas numa gaveta fechada à chave que só abria para depositar inertes as suas confissões. Levantava-se de manhã e sentia-se só, estranhamente só. A casa enchia-se de barulhos e outras gentes logo pela manhã, mas ele não conseguia apagar a solidão. Faltava-lhe na alma a outra metade.

Durante muito tempo procurou outros passos, tentando ignorá-la. Pegava no carro e zarpava para cidades longínquas, onde não sentisse a presença dela nos seus desígnios, onde não lhe sentisse os ecos das pegadas. Compunha canções de desatino e ócio que não procurava entender. Ficava acordado com elas até o sol nascer e lhe relembrar que os dias não iam acabar só porque o seu mundo ruía.


Ele conhecia outras pessoas que o iam absorvendo. Fumava demais e dizia que era do stress e do cansaço da vida. Conversava distraidamente com personagens das suas inúmeras escapadelas pela noite dentro e declarava aos amigos que não tinha tempo para coisas menores. Como ela. Ela era apenas uma coisa pequena e insignificante demais para a sua existência plácida e descontraída. Ela era apenas um ruído irritante que alguém se lembrara de injectar nos seus ouvidos para o importunar em todas as horas. E ele não o conseguia apagar. Porque era esse ruído cáustico que o fazia sonhar quando finalmente adormecia.


Ela, o ruído, era pequena sim. Mas apenas por fora. Era uma miúda irrequieta e bizarra, incongruente mas adulta demais porque a vida a fizera crescer antes do tempo, sem preparação ou aviso prévio. Todos os dias da sua vida se levantava da cama achando-se estranha do mundo, demasiado distante dos discursos que ouvia de outrem. Procurava encontrar-se a cada nova madrugada, descobriu finalmente quem era quando o conhecera. A ele, a doença que ela agora tentava anular no louco pulsar das suas veias.


Ela era de temperamento frágil e discreto, mas odiava o tédio e a displicência. Saía com os amigos de sempre e perdia-se por vezes em noites anestesiantes que a faziam esquecer. Adormecer a dor e a chama. Aventurava-se em novos lugares de caos e sedes, procurando novos extremos para preencher os seus sentidos ávidos de maiores visões. Chegava a casa depois, o corpo cansado, a alma cedida ao fundo de um qualquer copo vazio. Quando acordava chorava, implorando pelo nome dele às paredes do quarto. Era sempre assim quando se sentia só.


O engraçado é que ela também lhe escrevia. Poemas de amor e fúria, de ausências difíceis e manifestos de indiferença. Chamava pela razão, mas era sempre um pedido em vão. A sua mente tinha uma incompatibilidade grotesca com a racionalidade de pensamentos. Por isso nunca se compreendera a si mesma. Nunca soubera encontrar-se por entre as inconsistências das linhas que escrevia.


Um dia, os seus caminhos cruzaram-se novamente. E imprevisivelmente. As suas linhas paralelas deixaram a pose rígida e movimentaram-se em círculos incoerentes e desafiantes do espaço e do tempo. Souberam então que nada mais saberiam a partir de então. E que, por mais voltas que pudessem dar para se desviarem um do outro, as suas linhas dançariam sempre em círculos perfeitos, na arquitectura idílica do seu encontro.


domingo, junho 10, 2007

Hoje esqueci-me dos meus traços porque não encontrei ninguém que os lesse. Tenho sentido falta de alguém que mos leia para eu me entender a mim própria na minha abrupta incompreensão. Tento aprender por entre as falhas da caneta e as entrelinhas do que leio, mas não percebo, não consigo, tudo se mantém inalterável e secreto para mim, eu quero chegar lá mas parece que todos os sentidos perderam a fala em surdina e se esconderam de mim entre irracionalismos e sombras. Ah sim, as sombras. São como corvos devoradores.

Proclamo palavras de ordem a mim própria mas só quero apagar as regras. Recordá-las nunca mais. Nunca soube desenhar rectas perfeitas por entre as curvas do meu caminho, não sei mais as respostas de cor. Mas será que eu alguma vez as soube? Foste tu que acabaste com elas criando jardins onde não há muros que nos cercam. Mas também não existem tábuas de salvação ou rede por baixo do trapézio do sonho onde dançamos. É essa ideia que me corrói por dentro quando penso. A queda.

Vou ser sincera agora. Abafo gritos num silêncio que me executa. Aos poucos. Sem que eu perceba. Para mim está tudo bem agora. Mas as reticências ocupam demasiado espaço nestes dias. Pergunto-me se será bom ou mau para mim.

Gostava que me falassem a verdade. Mesmo aquela que se receia. Gostava de encontrar aquilo que procuro agora sem nunca sequer ter pretendido procurá-lo, e perceber finalmente aquilo que sempre procurei. Mesmo que persista em mim esse medo que me consome… sempre tive medo das pegadas que não domino, das pessoas que me despenteiam os sentidos já de natureza tão intrépida. Medo ou fascínio… não sei qual vou escolher agora para tu cantares.

E hoje não consigo escrever o teu nome com palavras. Acho que jamais alguém o conseguirá compor.

sexta-feira, junho 08, 2007

Apontamento

Hoje acordei novamente com vontade de escrever. Ontem também. Estes dias têm sido assim, tão doces e suaves que quase nos escapam entre os dedos, pela sua graciosidade divina. Sim, tenho andado com vontade de criar. Até me doerem as palavras de tanto abusar delas.

Sinto-me longe e perto, distante do mundo e ao mesmo tempo numa simbiose perfeita com ele. Fantasmas invadem-me o pensamento em busca de respostas que eu não dou não, hoje não. Hoje estou disponível apenas para mim mesma. Já fechei a loja e bloqueei todas as perguntas. Hoje só me quero afeiçoar a mim, fazer as pazes com os meus instintos.

Ecoam músicas diferentes pelas paredes e no chão, vozes dóceis que me arrepiam. Sinto-me capaz de ensinar-te agora os limites de nós e o amor que nos move a todos. Gosto de significados, já o disse a alguém, a quem merecia, a quem eu nunca esperei conseguir dizê-lo. É bom ter algo a que dar um significado, algo que seja só nosso, onde mais ninguém tem a chave para entrar.

Tenho calor e sono, febre e estranheza de dias passados, consumo impacientemente poemas breves, ignoro as chamadas pungentes da sensatez. Revejo-me no meu oásis de conversas e toques de sorrisos, mistérios de alma dóceis e ousados. Eu julgava que não gostava da perfeição até a encontrar numa forma obstinada e simples. A perfeição resume-se à simplicidade e à rebeldia de uma flor do campo, dançando ao vento, onde ninguém a julga e ninguém a prende. E por agora ninguém a pisa também. A flor deixa-se levar pela dança dos murmúrios. Gostava que fosse sempre assim.

Desenho com restos de lápis sonhos perfeitos. Simplifico palavras obscenas como amor ou saudade. Não se passa nada num raio de 12 horas passadas e já sinto a cabeça a andar à roda.

[ontem]