Crepúsculo
[no outro dia, na varanda do Porto]
Anoitece lá fora, mas não no meu espírito. Anoitece a velocidades estranhas, ainda há pouco via o crepúsculo, ainda agora o céu chorava à minha frente.
Agora sorrio para mim mesma enquanto o movimento da rua se esconde atrás das árvores tímidas aqui ao pé. Anoitece. Os carros abrandam, antes chegavam uns atrás dos outros, agora são os cães que passeiam os seus donos. Ou o contrário.
Recordo a tarde, quando chovia. Vejo as horas passadas e perdidas, não as procuro mais. O dia nasce e morre e renasce sem esplendor, sem glória, é o mesmo amanhecer, todas as manhãs o sol cresce da mesma forma, já aprendida, ritmada, ensaiada desde a eternidade.
Comidas rápidas, filas, filas, pessoas estranhas, apressadas, passos compassados, guarda-chuvas, automóveis, autómatos, números, são apenas números o que vejo à minha frente. Chama-me a atenção no refeitório aquela moça sozinha com cara de miúda pequena, deu-me vontade de lhe dar um abraço, talvez seja eu quem precisa de um carinho. Olhares, tantos olhares, cultivo olhares, expressões, tons de voz, risos, pegadas, suspiros de quem não conheço, de quem passa por mim no bar, no passeio ou no metro. Por vezes sorrio para uma cara nova, nem sempre sou bem recebida, as crianças são mais dóceis, devolvem-me um sorriso com dentes pequeninos, como se me contassem em surdina as suas traquinices. Fazem-me declinar numa nostalgia inútil e pensar no que já fui, onde cheguei, ainda não sou ninguém, apenas mais um número, mais uma conta, mais um lugar ocupado no metro, mais uma pequena alma preenchida de vivências próprias e fragmentadas.
Vejo passar um velho arrastado. Indigentes, moribundos, agonizantes pedidos de ajuda ao virar de cada esquina, barba por fazer de há vários meses, sonhos por fazer de há anos atrás, de outra vida que não vingou. Quando saio cedo de manhã ainda o vejo, aquele de casaco cinza, o sol já lhe comeu a cor, vejo-o deitado no meio de caixotes, enroscado como um gato com frio, naquela cama dura de cimento e pedra que não escolheu. Outros passam por mim, pedem dinheiro, uma ajuda, arrastam-se sem destino, sem vontade, sem voz, eu prossigo, mas dói a alma e fraquejo. Fraquejo agora que penso nisso, fraquejo pela minha própria fraqueza, pela minha impotência, pela minha inconsciente indiferença por esse mundo paralelo e entrelaçado ao meu.
Suspiro. Esgotam-se-me as palavras e olho cá para dentro. O coração está mole, a alma pequena, os meus pensamentos fogem, os sentimentos despertam em todas as direcções. Persegue-me, noites a fio, persegue-me… Aquela indescritível sensação de vazio e ritmo, de constante alucinação… Os ecos da cidade a ensurdecerem-me os ouvidos, a expressão da miúda pequena cravada na minha mente, a insustentável leveza das ausências que já me pesam, das pessoas que desejo e que estão tão longe… Costumava ter tudo delineado, costumava ter os teus traços memorizados, até os meus. Agora cada dia é um turbilhão de encontros, cada sonho é uma onda de misturas de imagens passadas, presentes, de gente que amo, de gente que não conheço, de sítios que cativam, de histórias que envolvem, de sorrisos que me despertam.
Olho para fora da janela e experimento a brisa da noite. Olho para o meu reflexo e experimento-me em novos sonhos, em novas vidas...

[no outro dia, na varanda do Porto]
Anoitece lá fora, mas não no meu espírito. Anoitece a velocidades estranhas, ainda há pouco via o crepúsculo, ainda agora o céu chorava à minha frente.
Agora sorrio para mim mesma enquanto o movimento da rua se esconde atrás das árvores tímidas aqui ao pé. Anoitece. Os carros abrandam, antes chegavam uns atrás dos outros, agora são os cães que passeiam os seus donos. Ou o contrário.
Recordo a tarde, quando chovia. Vejo as horas passadas e perdidas, não as procuro mais. O dia nasce e morre e renasce sem esplendor, sem glória, é o mesmo amanhecer, todas as manhãs o sol cresce da mesma forma, já aprendida, ritmada, ensaiada desde a eternidade.
Comidas rápidas, filas, filas, pessoas estranhas, apressadas, passos compassados, guarda-chuvas, automóveis, autómatos, números, são apenas números o que vejo à minha frente. Chama-me a atenção no refeitório aquela moça sozinha com cara de miúda pequena, deu-me vontade de lhe dar um abraço, talvez seja eu quem precisa de um carinho. Olhares, tantos olhares, cultivo olhares, expressões, tons de voz, risos, pegadas, suspiros de quem não conheço, de quem passa por mim no bar, no passeio ou no metro. Por vezes sorrio para uma cara nova, nem sempre sou bem recebida, as crianças são mais dóceis, devolvem-me um sorriso com dentes pequeninos, como se me contassem em surdina as suas traquinices. Fazem-me declinar numa nostalgia inútil e pensar no que já fui, onde cheguei, ainda não sou ninguém, apenas mais um número, mais uma conta, mais um lugar ocupado no metro, mais uma pequena alma preenchida de vivências próprias e fragmentadas.
Vejo passar um velho arrastado. Indigentes, moribundos, agonizantes pedidos de ajuda ao virar de cada esquina, barba por fazer de há vários meses, sonhos por fazer de há anos atrás, de outra vida que não vingou. Quando saio cedo de manhã ainda o vejo, aquele de casaco cinza, o sol já lhe comeu a cor, vejo-o deitado no meio de caixotes, enroscado como um gato com frio, naquela cama dura de cimento e pedra que não escolheu. Outros passam por mim, pedem dinheiro, uma ajuda, arrastam-se sem destino, sem vontade, sem voz, eu prossigo, mas dói a alma e fraquejo. Fraquejo agora que penso nisso, fraquejo pela minha própria fraqueza, pela minha impotência, pela minha inconsciente indiferença por esse mundo paralelo e entrelaçado ao meu.
Suspiro. Esgotam-se-me as palavras e olho cá para dentro. O coração está mole, a alma pequena, os meus pensamentos fogem, os sentimentos despertam em todas as direcções. Persegue-me, noites a fio, persegue-me… Aquela indescritível sensação de vazio e ritmo, de constante alucinação… Os ecos da cidade a ensurdecerem-me os ouvidos, a expressão da miúda pequena cravada na minha mente, a insustentável leveza das ausências que já me pesam, das pessoas que desejo e que estão tão longe… Costumava ter tudo delineado, costumava ter os teus traços memorizados, até os meus. Agora cada dia é um turbilhão de encontros, cada sonho é uma onda de misturas de imagens passadas, presentes, de gente que amo, de gente que não conheço, de sítios que cativam, de histórias que envolvem, de sorrisos que me despertam.
Olho para fora da janela e experimento a brisa da noite. Olho para o meu reflexo e experimento-me em novos sonhos, em novas vidas...

2 comentários:
Estou sem palavras perante a beleza da descrição do teu olhar e do teu sentir...Sinto a emoção à flor da pele, tens esse poder...a tua escrita maravilhosa despertou emoção.
Continua...
Comecei por ler o teu post anterior no Poetry, depois visitei a tua página e não consegui parar enquanto não passei a minha vista por quase todas as tuas palavras... tens um Dom naquilo que escreves, não pares nunca! Um beijinho enorme para ti e obrigado pela visita no meu humilde cantinho, vai aparecendo és sempre bem vinda!
nc
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