sábado, junho 16, 2007

Intersecções I

Ele escrevia-lhe todos os dias. Guardava as cartas numa gaveta fechada à chave que só abria para depositar inertes as suas confissões. Levantava-se de manhã e sentia-se só, estranhamente só. A casa enchia-se de barulhos e outras gentes logo pela manhã, mas ele não conseguia apagar a solidão. Faltava-lhe na alma a outra metade.

Durante muito tempo procurou outros passos, tentando ignorá-la. Pegava no carro e zarpava para cidades longínquas, onde não sentisse a presença dela nos seus desígnios, onde não lhe sentisse os ecos das pegadas. Compunha canções de desatino e ócio que não procurava entender. Ficava acordado com elas até o sol nascer e lhe relembrar que os dias não iam acabar só porque o seu mundo ruía.


Ele conhecia outras pessoas que o iam absorvendo. Fumava demais e dizia que era do stress e do cansaço da vida. Conversava distraidamente com personagens das suas inúmeras escapadelas pela noite dentro e declarava aos amigos que não tinha tempo para coisas menores. Como ela. Ela era apenas uma coisa pequena e insignificante demais para a sua existência plácida e descontraída. Ela era apenas um ruído irritante que alguém se lembrara de injectar nos seus ouvidos para o importunar em todas as horas. E ele não o conseguia apagar. Porque era esse ruído cáustico que o fazia sonhar quando finalmente adormecia.


Ela, o ruído, era pequena sim. Mas apenas por fora. Era uma miúda irrequieta e bizarra, incongruente mas adulta demais porque a vida a fizera crescer antes do tempo, sem preparação ou aviso prévio. Todos os dias da sua vida se levantava da cama achando-se estranha do mundo, demasiado distante dos discursos que ouvia de outrem. Procurava encontrar-se a cada nova madrugada, descobriu finalmente quem era quando o conhecera. A ele, a doença que ela agora tentava anular no louco pulsar das suas veias.


Ela era de temperamento frágil e discreto, mas odiava o tédio e a displicência. Saía com os amigos de sempre e perdia-se por vezes em noites anestesiantes que a faziam esquecer. Adormecer a dor e a chama. Aventurava-se em novos lugares de caos e sedes, procurando novos extremos para preencher os seus sentidos ávidos de maiores visões. Chegava a casa depois, o corpo cansado, a alma cedida ao fundo de um qualquer copo vazio. Quando acordava chorava, implorando pelo nome dele às paredes do quarto. Era sempre assim quando se sentia só.


O engraçado é que ela também lhe escrevia. Poemas de amor e fúria, de ausências difíceis e manifestos de indiferença. Chamava pela razão, mas era sempre um pedido em vão. A sua mente tinha uma incompatibilidade grotesca com a racionalidade de pensamentos. Por isso nunca se compreendera a si mesma. Nunca soubera encontrar-se por entre as inconsistências das linhas que escrevia.


Um dia, os seus caminhos cruzaram-se novamente. E imprevisivelmente. As suas linhas paralelas deixaram a pose rígida e movimentaram-se em círculos incoerentes e desafiantes do espaço e do tempo. Souberam então que nada mais saberiam a partir de então. E que, por mais voltas que pudessem dar para se desviarem um do outro, as suas linhas dançariam sempre em círculos perfeitos, na arquitectura idílica do seu encontro.


2 comentários:

Anónimo disse...

"As suas linhas dançariam sempre em círculos perfeitos, na arquitectura idílica do seu encontro." Esta frase está simplesmente fantástica. Digas o que disseres, eu não crio nada assim. Brutal. Até metes bedum com tanto jeitinho pra coisa. Arre. Lol

Anónimo disse...

sabes k mais? adoro a forma como danças com as palavras :)

(engraçado como estupidamente revejo aqui alguns caminhos meus... mas talvez cada um de nós possa ver um pouco de si nas linhas que se lêem!)

beijo