terça-feira, agosto 12, 2008

Dali e os relógios


São à maneira do surrealismo, que é o mesmo dos sonhos e das memórias. Entranham-se persistentemente na tela que pintei na tua ausência, escorrem uma gosma de tempo inseguro por detrás de uma cortina de cores velhas e disformes. Reconheço-lhes o absurdo e a demência que impregnam em mim como espasmos, quando perscruto avidamente os ponteiros que dançam no éter. E creio que fazem pouco de mim. Realmente, não tenho sobre eles qualquer poder, e eles riem-se um pouco da minha óbvia debilidade. Pergunto-lhes por ti, mas de ti nada sabem, porque não os leste ainda, e eu não te conseguirei explicar nunca da maneira certa. Se ao menos eles me deixassem dormir como dantes…

Ironicamente, os relógios não me servem de nada. Servem apenas para te tentar escutar mais alto, e perceber que não consigo ouvir-te. Os ponteiros ampliam os segundos que se aproximam, para logo de seguida os executarem violentamente, sem falhas, numa operação subtractiva que me dá prazer ao mesmo tempo que me deixa a alma pequenina. Como se da tua ausência dependesse a execução do tempo a conta-gotas. Quando fico sozinha, escuto a minha própria solidão, e apercebo-me de como ela pode ser ambiciosa quando me apanha desprevenida. Quando estou sozinha, tudo me parece assustadoramente desproporcionado, como se tudo à minha volta tivesse o dobro do tamanho normal. E na minha solidão encolho-me agarrada aos joelhos enquanto me convenço de que tudo está sob o meu controlo, e que o meu mundo cabe mesmo dentro de uma caixa de fósforos, e que tudo o que acontecer a partir dele será porque eu assim o consenti.

Dança comigo agora por entre os espaços dos ponteiros, onde eles não conseguem executar o nosso tempo, e onde o princípio é o fim ao mesmo tempo e para além do tempo.

1 comentário:

Rothschild disse...

"Há dias em que penso que vou morrer com uma overdose de satisfação".
Salvador Dali