Sabes, eu tinha deixado demasiado de mim no outro que me partiu os dedos da alma e pensei que não ia nunca mais conseguir levantar-me sozinha, mas tu deste-me a mão e a voz, ensinaste-me os passos e as inconfidências que nos erguem e bebeste do meu corpo os sintomas malignos dos arrepios passados, trouxeste-me a uma planície onde tudo é perfeito perfeito como a cerveja sem álcool e o Bruno Nogueira, agora contemplo-me longe de mim e vejo uma miúda cheia de vida com figuras kitsch a navegar nos sentidos e frases do Kundera a sair pela boca fora, mas só as das ultimas páginas do sorriso de Karenine, aquelas onde choras e não sabes porquê. Não quero mais saber de quem não gosta de mim porque não falo de vernizes escuros ou das tendências da moda, não me troco por uma Barbie oxigenada e frígida, sou livre e amada por ser quem sou e por dar o que dou que ás vezes é dar demais quando dou a quem não sabe receber, mas nunca é demais o que damos aos outros quando sabemos que vale a pena. E sabes, gosto das terças-feiras na jam session a ouvir os malucos do saxofone e a conversar com os velhos amigos até de madrugada o gajo fardado nos mandar embora com duas pedras na mão, e gosto quando chego a casa e tenho alguém á minha espera com uma piada nova e de repente o telefone toca e já a casa está invadida com os suspeitos do costume com o jantar em sacos do Lidl e uma aventura nova para contar, é bom sentirmo-nos acompanhados e protegidos, pois se estamos sós não ajudamos ninguém e ninguém nos ajuda, não partilhamos notas musicais com ninguém nem nos sentimos parte de outros mundos, não nos sentimos completos se não pertencemos a alguém. Se não formos o kitsch de alguém, o sonho, o desejo, a nota final da partitura de outra pessoa.


(E sabes, pipoca, é em ti que eu penso quando a musica termina e toda a gente bate palmas. Agora não te esqueças que confiei a ti os meus dedos da alma).

ESMAE café-concerto