sábado, novembro 10, 2007

Mutações

Lembro-me de quando era pequena e tinha caracóis despenteados. Ainda mais despenteados. A vida era simples pela objectiva do meu limitado campo visual abaixo da cintura dos adultos. Os dias chegavam para tudo e a noite era serena no meu cobertor em tom azul e rosa creme e bege deslavado. Não havia problemas porque eu não os entendia e os meus bonecos de pano eram os interlocutores perfeitos de conversações intrínsecas. E sentia-me protegida pelo pai de barba farfalhuda e pela mãe babada. A toda a hora.


Agora acordo de manhã e nunca dormi as horas todas. Adormeço à noite e nunca vivi as horas todas. O cobertor mudou de cores e mudou de cama e a cama é outra assim como a casa o é também. Bonecos de pano viraram gente que conheci com o passar das primaveras e com quem divido a rebeldia dos dias. Alguns assumem a forma de amigos/ interlocutores perfeitos/ preciosidades. Desafiam-me a prender-me cada vez mais a eles, dia após dia. Graciosamente, gratuitamente. Outros tentam agarrar-me com falácias e mentiras e tentativas de arame farpado. Esses são os que não me interessam. Mas agora já não estou protegida a toda a hora desses que não me interessam. E o arame farpado deixa por isso algumas marcas de vez em quando.


Gostava de não ser demasiado exigente com a realidade. Mas o mundo era bem melhor quando eu brincava com bailarinas de papel com asas. Pelo menos tudo parecia ao alcance do meu entendimento, da minha receita estereotipada explicativa das coisas. Agora nem sempre percebo todas essas coisas. A receita passou do prazo de validade. A protecção absoluta fugiu com ela, restaram tentativas frágeis de consolidação emocional e racional. De notar que pus o emocional antes do racional. Ponho sempre, deixo sempre esse lado mais a descoberto, por entre as palavras curtas e desordenadas que saem nos momentos de difícil dicção e compreensão.


E depois há alguém que me diz que ainda sou uma criança pequena. Eu digo que sou demasiado pequena para as minhas aspirações. Mas quem me dera ser realmente pequena. Poder voltar a casa e fazer birra de mimos, e aninhar-me no colo de quem nunca pede nada em troca. Hoje toda a gente pede algo em troca. Hoje as palavras não significam o que querem dizer por si mesmas. Porque há sempre alguém que viola o sentido das palavras para satisfazer caprichos. Por isso é que o mundo se virou contra si mesmo empunhando a bandeira das frases erradas. Não era certamente isto que o arquitecto do cosmos previa ao projectar-nos.


As nuvens também me pedem algo em troca, habitualmente. Tentativas de construções de figuras oníricas através dos seus contornos. É um pedido delicioso, o delas.


2 comentários:

Vaskio disse...

Todos nós temos saudade do tempo de meninice de vez em quando. Eu ainda conservo religiosamente os meus Legos. Aliás ainda compro; aliás, quem me oferece Legos vê-me sorrir como uma criança. Porque percebe o valor da alegria dum sorriso genuíno e incorruptível. São as pequenas coisas que nos levam atrás no tempo, quando éramos projectos de gente e arquitectos de mundos em que construíamos e destruíamos vidas sem magoar na realidade ninguém. Os dias agora não chegam, mesmo quando têm 30 horas. Mas eu penso que todos nós tínhamos um vilão nas nossas brincadeiras, e sempre soubemos o que fazer com ele, e no final vencia sempre o bem. É por isso que sei que tu te lembrarás também daquilo que fazias ao vilão entre a porcelana das tuas bonecas, e o arame farpado é sempre mero linho perante a força duma vontade inóspita e selvagem de nos amarmos mais do que a ninguém. Preciosidades atraem preciosidades, e assim se criam os tesouros humanos que cada amizade abraça. Sei que agora as falas da bonecada já não dependem da tua imaginação, e que já não podes evitar que te magoem quando em vez, mas também sei que as tuas linhas só a ti pertencem, e com elas podes mudar o mundo que gira (porque gira sim) à tua volta.

Anónimo disse...

gostei deste. mas também de todos os outros. obrigada por nos mostrares esse teu mundo...

e vou ficar a espreita miluzinha...*