sexta-feira, maio 23, 2008

Fragmentação da memória

Não tenho tempo para escrever. É verídico, os dias correm de forma insubordinadamente veloz. As aulas parecem glacialmente teóricas e especulativas. A matéria insípida acumula-se ao lado do pc, os trabalhos ocupam metade do cérebro, o site da meteorologia revela a insanidade das nuvens de Maio. Escrevo enquanto chove lá fora, e na casa de fim-de-semana oiço o som com que ela dança nos telhados com nitidez. Não é como nos prédios altos onde se distinguem apenas os barulhos dos vizinhos e o ruído motorizado de uma multidão sem rosto.

É Maio, decisivamente o mês mais rápido do ano. O mês das serenatas e das capas negras de saudade, e das noites intermináveis passadas de forma invencível, e do jet lag dos relógios violentamente trocados, e das emoções da alma apertada. Eu gosto da forma caótica deste mês onde tudo parece acontecer. Até as desilusões me fizeram relativizar as coisas e perceber quem realmente importa conservar no coração e quem só anda por aí a fingir ser gente a sério, para conseguir ser alguma espécie de herói a ter orgasmos com as falhas dos outros. É assim que o mundo gira, com pessoas que interessam e outras que não interessam assim tanto, porque não somos assim tão bonitos como tentamos parecer por fora. Pena que eu nem sempre saiba perceber a diferença.

Tens razão, é reconfortante ouvir o som da chuva a cair nos telhados da casa.

Procuro-te no seio das mensagens enigmáticas, leio-nos nas minhas linhas a toda a hora. Já me referi à data e à insanidade das nuvens? Apeteceu-me desafiar o horário e escrever mesmo sem ter tempo, porque às vezes precisamos mesmo de um tempo para nós. Tempo para pensarmos em nós, mais do que nos outros, para variar um pouco, afinal temos o papel principal numa peça que não faz sentido sem a nossa efervescência. A encenação nem sempre cativa o público, mas também só temos uma tentativa, e o grau de complexidade que assumimos poderá não ser sedutor para a audiência que assiste. Não temos códigos de segurança válidos quando estamos no palco e interagimos com os outros. Pessoalmente, gosto de pessoas densas, insubmissas. Que me digam coisas interessantes e inteligentes. Que me façam não compreender logo tudo à primeira.

E agora não me apetece escrever mais nada de congruente. É Maio, e chove nos telhados, e os meus pés estão frios, e tu não estás aqui. E as viagens de autocarro demoram sempre duas horas e eu fico cansada e melancólica ao ver as árvores correrem para trás muito depressa e a estrada ser sempre tão comprida. E tenho medo de ver as árvores fugirem tão depressa. Tenho medo do tempo se escapulir vertiginosamente e o esquecimento invadir as árvores como chuva nos telhados, toldando para sempre a memória das pessoas.


Kundera, o melhor contador de histórias de todos os tempos, diz que, na matemática existencial, o grau da lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória, e o grau da velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento. Esta operação elementar evoca-me a tua imagem, e a razão pela qual eu nunca me vou esquecer de ti. A lentidão de certos momentos é deliciosa. O acto de absorver sofregamente os pormenores. Ver-te chegar e o tempo suspender-se nos filamentos da memória. Decorar-te como se fosses uma frase de engate, um acorde da balada mais densa, uma quimera. Consumir-te da forma mais demorada possível, para que sejas poeticamente eterno, como já és, mas talvez ainda mais eterno, se for possível, até a própria eternidade se encolher num canto, embaraçada pela sua pequenez.

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